Teoria da Constituição/Conceito de Constituição: mudanças entre as edições
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Edição das 11h51min de 12 de março de 2007
INTRODUÇÃO O presente trabalho intitulado “O princípio da capacidade contributiva como instrumento para realização da justiça tributária” tem como finalidade analisar a possibilidade de acolher o postulado da capacidade contributiva como critério de diferenciação adequado, a fim de bem aplicar o princípio da igualdade, com vistas a concretização da justiça tributária. A tributação pode ser considerada a manifestação mais visível do poder de interferência sobre a vida do cidadão. Com o correr dos tempos, a forma como a exigência tributária foi sendo aplicada vem se desenvolvendo e ganhou feições diferenciadas, especialmente no que tange à concatenação com a legitimidade, ou, em outras palavras, com a vontade popular. O princípio da legalidade determina que nenhum tributo será exigido sem disposição legal, o que, não se pode deixar de admitir, já se constitui em uma certa garantia. Entretanto, a legitimidade abarca uma proteção muito mais ampla, no sentido de exigir a consonância com as demais normas constantes da Constituição. Com base na teoria que concebe a Constituição como ordem normativa formada por regras e princípios, serão utilizadas, dente outras, as obras de Konrad Hesse e J.J.G. Canotilho e, especificamente para distinguir as espécies normativas, serão estudados os critérios de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Por essa perspectiva, o conjunto dos princípios constitucionais tem força ativa imediata, podendo ser utilizados como razão de decidir. Na seara tributária, eles formam o que se convencionou chamar de estatuto do contribuinte. A partir do momento em que o povo transfere ao Constituinte o poder de elaborar a Constituição que os regerá, deposita também todas as suas expectativas, não só jurídicas, mas também sociais e espirituais. A busca pela justiça em seu sentido mais lato. 2 Um dos grandes problemas enfrentados pelas sociedades atuais refere-se à distribuição de renda, atuando a tributação neste ponto, por muitas vezes, como fator de agravamento, considerando que a imposição de exações pesadas aos que não as podem suportar, leva, necessariamente, ao aprofundamento da desigualdade. No desenvolvimento do tema, a estruturação do trabalho será realizada em três capítulos. No primeiro, procurar-se-á compreender a Constituição como ordem normativa de regras e princípios, iniciando pelo seu conceito e conteúdo, estabelecendo tipologia das espécies normativas que a formam e os critérios de distinção. Analisar-se-á o conceito de princípios jurídicos, suas funções e as hipóteses e solução para possíveis conflitos. No segundo capítulo, posicionando os princípios na esfera constitucional, será realizado estudo acerca das limitações operadas por meio de princípios. Proceder-se-á, pois, a apreciação da limitações constitucionais ao exercício da competência tributária, fixando de plano a diferença entre poder de tributar e competência tributária. O Sistema Constitucional Tributário será enfocado, passando pela idéia de um imposto único e pela noção de sistema complexo de tributação. A seguir, para bem observar o Sistema Constitucional Tributário brasileiro, será colocada uma breve síntese evolutiva. A limitações serão então demonstradas a partir das imunidades vistas de modo geral e as previstas no artigo 150, VI, da CRFB e seguindo pelos princípios constitucionais do exercício da competência tributária. Finalmente, no terceiro capítulo, serão analisadas as possibilidades de utilização do princípio da capacidade como instrumento para realização da justiça tributária. Primeiramente, estudar-se-á as noções de justiça, o meio termo de Aristóteles e as fórmulas de justiça distributiva. Adiante, será demonstrada a atualidade da aplicação da justiça distributiva, nas suas vertentes: social, fiscal e tributária. Partir-se-á, a seguir, para o estudo do princípio da capacidade contributiva, conceito, conteúdo, mensuração e mínimo existencial. A 3 eficácia da espécie normativa será o próximo tema, finalizando com o emprego do princípio como critério de diferenciação para concretização da justiça tributária. Utilizar-se-á, na presente dissertação, o método evolutivo. A técnica de pesquisa será bibliográfica. 4 1 A CONSTITUIÇÃO COMO ORDEM NORMATIVA DE REGRAS E PRINCÍPIOS A constatação de um Estado que, sem deixar de lado a importância e manutenção de seu Poder, atribuiu força determinante ao jurídico, sufragando na Constituição as garantias dos cidadãos e os limites de sua própria atuação é o marco da evolução do pensamento constitucional. A visão ampla do desenvolvimento é perfeitamente perceptível, entretanto, a idéia de pensamento constitucional pressupõe, num primeiro momento, a adoção de algumas balizas, de modo a reconhecer que se trata de um pensamento político e também jurídico, inserido em uma situação história e em um tipo de Estado determinado. De certo modo, o pensamento constitucional ou “todo aquele referente à constituição”1 seria o que hoje (a partir do século XX) denomina-se Teoria da Constituição. O pensamento constitucional traz consigo uma carga histórica de ideologias muito diversificadas, podendo teoria constitucional pode ser entendida como o pensamento constitucional em seu aspecto mais técnico, dirigido a questões mais peculiares, como sua força normativa. 1.1 A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO As primeiras Constituições tiveram um reforçado teor revolucionário e inspiração jusnaturalista. Demonstravam um sentimento intenso de desconfiança contra o Absolutismo, com uma doutrina liberal de valorização da sociedade burguesa de cunho individualista e se basearam em um conceito político e filosófico de antagonismo ao poder2. As declarações de direito, por outro lado, tinham a índole de manifesto ou plataforma e com os preâmbulos definiam a ideologia constitucional, de inspiração política. Somente mais tarde, perfeitamente consolidadas as instituições liberais, tornou-se definida e nítida a 1SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 2. 2BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 226-227. 5 feição jurídica, de forma que “desde aí o conceito jurídico de Constituição, ou seja, o conceito da Constituição como lei ou conjunto de leis aparece em substituição do conceito político ou pelo menos como alternativa teórica e doutrinária para este último.”3 Tal faceta ganhou relevo especialmente com a Constituição brasileira de 1824 e a belga de 1832. No século XX, emergindo no ocidente o Estado social burguês, eclodiram as Constituições socialistas, não mais disciplinando o poder estatal e os direitos individuais como no século anterior, mas regulando uma esfera muito mais ampla: poder estatal, sociedade e indivíduo4. Nessa perspectiva, merecem destaque as Constituições do México de 1917 e de Weimar de 1919, que enunciaram os princípios constitucionais do Estado Social em gestação, pela via do compromisso. Sublinha Bonavides que, com a programaticidade, entrou em crise o conceito de Constituição penosamente elaborado pelos constitucionalistas do Estado liberal e pelos juristas do positivismo, emergindo uma nova tendência que atribui importância central aos princípios denominada Pós-Positivismo. O drama jurídico das Constituições contemporâneas estaria residindo, fundamentalmente, na passagem da esfera abstrata dos princípios (definidores dos direitos sociais concernentes às relações de produção, ao trabalho, à educação, à cultura, à previdência), à ordem concreta das normas, com programaticidade jurídica e positividade. A grande crítica à concepção formal de Constituição foi desferida por Lassale5. Em contraposição à Constituição folha de papel, expôs a idéia de Constituição real, viva, dinâmica, como conjunto de forças sociais e econômicas indomáveis. Pode-se destacar, também, neste bojo, a idéia de Constituição como instrumento portador de uma determinada 3BONAVIDES, op. cit., p. 230. 4Ibid., p. 230-231. 5LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988. 6 concepção de vida ou de um sistema de valores, capaz de exprimir componentes espirituais de uma realidade cultural, na definição de Smend6. Nas palavras de Canotilho: o sentido histórico, político e jurídico da constituição escrita continua hoje válido: a constituição é uma ordem jurídica fundamental de uma comunidade. Ela estabelece em termos de direito e com os meios do direito os instrumentos de governo, a garantir direitos fundamentais e a individualização de fins e tarefas.7 No seu conjunto, regras e princípios constitucionais valem como norma. Nessa visão, Garcia de Enterria aborda a “Constituição como norma” e Hesse trata da “força normativa da Constituição”. O professor Garcia de Enterria, apreciando a “Constituição como norma”, parte da concepção do constitucionalismo do final do século XVIII, pelo qual ela se caracterizaria por sua origem popular ou comunitária e por seu conteúdo, indicado com precisão no famoso art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 “toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos e nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição”. Ao desenvolver seu argumento, Garcia de Enterría mostra extrema facilidade de compreensão do fenômeno em sua totalidade, indicando precisamente o caráter normativo da Constituição: A Constituição, por uma parte, configura e ordena os poderes do Estado por ela construídos; por outra, estabelece os limites do exercício do poder e o âmbito de liberdades e direitos fundamentais, assim como os objetivos e as prestações que o poder devem cumprir em benefício da comunidade.8 Nesse ponto de vista, foi evidenciada a idéia de Constituição como norma jurídica, como norma das normas, lei superior, fonte de a toda produção normativa, não importando a 6Cf. SMEND. Rudolf. Constitucion y derecho constitucional. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1985. 7CANOTILLHO, J.J.G. Direito constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 183. 8ENTERRIA, Eduardo Garcia. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1981. p. 49. Tradução livre do original: “La constitución, por una parte, configura y ordena los poderes del Estado por ella construidos; por otra, establece los limites del ejercicio del poder y el ámbito de libertades y derechos fundamentales, así como los objetivos positivos y las prestaciones que el poder debe de cumplir en beneficio de la comunidad. 7 qualidade das matérias reguladas ou a natureza das normas expressadas, todas, sem exceção, têm juridicidade, vinculatividade e atuam como normas jurídicas constitucionais. Não equivale, entretanto, à simples definição histórica e cultural da normatividade da Constituição. Garcia de Enterria efetivamente demonstra a necessidade de compreensão do fenômeno constitucional como núcleo central e unificador do sistema jurídico, ou seja, como norma fundamental de todo o ordenamento. Sob esse enfoque, a Constituição é uma lei, entretanto, uma lei diferente das demais: específica, uma vez que o poder que a gera e o processo que a veicula é constituinte; necessária, não podendo ser dispensada ou revogada, apenas modificada; hierarquicamente superior, é lei fundamental que se encontra acima das demais, à qual todas têm que se submeter; e é constitucional, pois, a princípio, detém o monopólio das normas constitucionais.9 Já na segunda concepção, é acrescentada ao conceito alhures a noção de programa normativo conformador10. Hesse, em sua obra A força normativa da Constituição, escolhe como ponto de partida para a apresentação de suas idéias o confronto às reflexões elaboradas por Lassale em A essência da Constituição, na qual este afirma que a Constituição escrita se resume a uma folha de papel, sendo a verdadeira nada mais do que a somatória dos fatores reais de poder dentro de uma sociedade: Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do Poder. A verdadeira constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as Constituições escritas não têm valor, nem são duráveis, a não ser que exprimam, fielmente, os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.11 9ESPINDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 96. 10CANOTILHO, J. J. G. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Almedina, 1982. p. 119 e segs. 11LASSALE, op. cit., p. 67. 8 Hesse esforça-se para demonstrar o resultado do conflito entre os fatores reais de poder e a Constituição, afirmando que a conversão das questões jurídicas em questões de poder somente ocorre se determinados pressupostos não puderem ser satisfeitos. A Constituição transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar as condutas de acordo com a ordem nela estabelecida, desde que se faça presente na consciência geral, especialmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional, não só a vontade do poder, mas a vontade de Constituição. A experiência histórica das Constituições tem ensinado que o poder da força é superior ao da norma jurídica, de forma que, aparentemente, a normatividade submeter-se-ia à realidade fática. Hesse refuta, todavia, a aceitação cega desta constatação, uma vez que tal atitude levaria o Direito Constitucional ao desempenho de uma única função que seria a de justificar as relações de poder dominantes, descaracterizando-se inteiramente como ciência normativa, operando-se simplesmente como ciência do ser.12 O autor apresenta a possibilidade de coexistência de duas forças: de um lado a realidade fática e de outro a força normativa intrínseca à própria Constituição. Com o fito de responder a questão da viabilidade desta coexistência, parte de três aspectos: primeiro, condicionamento recíproco entre a Constituição jurídica e a realidade político-social; segundo, consideração dos limites e possibilidades de atuação da Constituição jurídica; e, por último, investigação dos pressupostos de eficácia da Constituição.13 Dessa forma, o significado da ordenação jurídica na realidade e, em face dela, somente pode ser apreciado se ambas as questões - realidade e ordenação - forem analisadas no seu condicionamento recíproco. Deve-se deixar para trás as experiências atrasadas no sentido de 12HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 11. 13Ibid., p.13. 9 isolamento entre norma e realidade (positivismo jurídico - Jellinek e sociológico - Carl Schmit). A separação estanque entre o ser e o dever ser é criticada pelo fato de que tal providência leva necessariamente ao reforço da tese da força determinante da realidade fática. Em seu entendimento, a solução não está em considerar a resposta unicamente na escolha de uma alternativa, ao contrário, apresenta-se quando se tem em conta que a norma constitucional não possui existência autônoma em face da realidade14. A eficácia de uma norma jurídica está atrelada às condições naturais, técnicas, econômicas, sociais e também ao substrato espiritual que de uma forma ou de outra influenciam na conformação, no entendimento e autoridade das proposições normativas. Nesse contexto, a força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas mas não podem ser definitivamente separadas ou confundidas, devem coexistir15. A Constituição adquire força normativa à medida que consegue alcançar a sua pretensão de eficácia. Tal aspiração esbarra nos limites e possibilidades a serem enfrentados pela Constituição jurídica, uma vez que “as Constituições não podem ser impostas aos homens tal como se enxertam rebentos em árvores. Se o tempo e a natureza não atuaram previamente, é como se pretendesse coser pétalas com linhas.”16 Como espécie de limitação à força normativa da Constituição, Hesse aponta o germe material de sua força vital. Assim, se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas são ignoradas pela Constituição, ela carece de sua essência, e, conseqüentemente, a disciplina normativa contrária a estas leis tende a não se concretizar. 14HESSE, op. cit., p.14. 15Ibid., p.15 16Ibid., p.17 10 Na realidade, a força normativa da Constituição não reside somente na sua adaptação à realidade, ela mesma se constitui em uma força ativa, capaz de impor tarefas “se existir disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se existir vontade de concretizar essa ordem”17. Converte-se em força ativa quando existe vontade de Constituição. Essa vontade origina-se de três vertentes: compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa que proteja o Estado, compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos e, por isso, precisa de constante legitimação e, consciência da necessidade, para eficácia dessa ordem, do concurso com a vontade humana. Por outro lado, o poder determinante da Constituição pressupõe que ela não se apoie em uma estrutura unilateral. Ao contrário, deve incorporar com ponderação parte de estrutura contrária (direitos fundamentais não podem existir sem deveres). A eleição de um princípio de forma absoluta pode ser um fator decisivo para a sua derrocada em caso de crise. Em síntese, de acordo com o pensamento de Hesse, a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica, não podendo ser concebida separadamente desta, de forma que a sua eficácia só é possível levando-se em conta aquela realidade. Entretanto, a Constituição não se apresenta apenas como expressão de uma realidade, mas sim, graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma essa realidade política e social. A Constituição assume então uma força ativa, modificadora da realidade. A efetividade dessa força ativa está ligada à consciência da inviolabilidade da Constituição - quanto mais forte for a vontade de Constituição maior será sua força normativa e menos significativos serão os limites e restrições impostos. Diante do conflito entre a realidade fática e a Constituição, esta não assume, como afirmado por Lassale, a parte mais fraca, mas pode, respeitando-se os limites e pressupostos, 17HESSE, op. cit., p.19 11 assegurar sua força. Apenas quando esses pressupostos não puderem ser realizados é que haverá a conversão das questões jurídicas em questões de poder, sucumbindo a Constituição jurídica à real18. A idéia fundamental de Hesse está em que, apesar de não dispor de existência autônoma em relação à realidade, da qual, aliás, não pode se desvincular, a Constituição não é simplesmente imposta por essa realidade; em outras palavras, embora condicionada pela realidade político-social, a Constituição não é determinada por ela. Inocêncio Mártires Coelho pondera que, na concepção de Hesse, a força vital da Constituição está assentada na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, mas sua força normativa não decorre dessa adaptação a uma préconcebida realidade, advém de um fator de natureza espiritual e cultural denominado “vontade de constituição” 19. A Constituição em uma correta perspectiva jurídico-normativa, por sua energia conformadora da realidade social, converte-se em um autêntico fator real de poder, com ela interagindo, influindo e recebendo influência, de forma recíproca. 1.1.1 Conceito de Constituição O estudo sobre o conceito é indispensável nessa busca por uma demonstração eficiente da força normativa da Constituição e dos princípios constitucionais. Sob o ponto de vista material (estrutural), a Constituição é “o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais”20. Podem 18HESSE, op. cit., p.25 19COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse: uma nova crença na Constituição. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 96, p. 167-177, out/dez. 1990. 20BONAVIDES, op. cit., p. 80. 12 então, ser sintetizados como aspectos materiais da Constituição, a composição e o funcionamento da ordem política. Bonavides pondera que não existe Estado sem Constituição, uma vez que qualquer sociedade politicamente organizada possui uma estrutura mínima21. Resumidamente, a Constituição em seu aspecto material relaciona seu conteúdo mais importante, eleito para figurar como matéria constitucional. Por outro lado, é comum serem inseridos no corpo das Constituições preceitos de natureza aparentemente constitucional, os quais não se referem aos elementos essenciais ou institucionais da organização. Essas normas, em que pese não se constituírem em pontos nucleares da existência política, uma vez constitucionalizadas, do ponto de vista formal, somente podem ser suprimidas ou alteradas mediante um processo diferente, mais solene e complicado. Essa análise anterior, como visto, procura determinar a diferenciação dos preceitos elevados à esfera constitucional, por meio de critérios de importância substancial. Canotilho e Moreira, por sua vez, buscam conceituar Constituição partindo da crise do conceito clássico doutrinário que restringe sua função a limitar o poder e garantir as liberdades políticas22. Fugindo também da visão restritiva, Cléve vislumbra no póspositivismo a Constituição como processo de espaço e luta, que, ao invés de ser compreendida como mero instrumento de limitação do Estado, atualmente se constitui em um documento normativo do Estado e da sociedade. Em suas palavras: A Constituição representa um momento de redefinição das relações políticas e sociais desenvolvidas no seio de determinada formação social. Ela não apenas regula o exercício do poder, transformando a potestas em auctoritas, mas também impõe diretrizes específicas para o Estado, apontando o vetor (sentido) de sua ação, bem como de sua intenção com a Sociedade. A Constituição opera força normativa, vinculando, sempre, positiva ou negativamente, os poderes públicos.23 21Constituição em sentido formal, pela classificação que diferencia o sentido material como aquele em que a Constituição incorpora determinados conteúdo fundamentais para poder assim ser denominada. A expressão “material” pode ainda ser empregada para se referir às matérias elevadas à esfera constitucional. 22Cf. CANOTILHO. J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Almedina, 1995. 23CLÉVE. Clemerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 41. 13 É preciso que se tenha em conta que o conceito de Constituição é variável de acordo com a dimensão analisada, seja jurídica, sociológica ou política, dentre outras concepções possíveis. Para a escola sociológica não é suficiente conhecer a Constituição como norma positiva, torna-se, também, indispensável buscar na realidade social a origem ou a fonte da ordem. Como expoente dessa perspectiva pode se destacar Lassale, o qual, como já discorrido alhures, afirma que a Constituição somente atingirá os fins almejados (concretização) se exprimir os fatores reais de poder.24 Esse autor, com o fito de estudar seu objeto, parte da análise das diferenças entre lei e Constituição, uma vez que com tal método acredita conseguir obter sua resposta. Começa por afirmar que ambas as expressões têm um conteúdo genérico comum, sendo que “uma Constituição, para reger, necessita de aprovação legislativa, isto é, tem que ser também lei. Todavia, não é uma lei como as outras, uma simples lei: é mais do que isso.”25 Para reforçar a tese defendida, argumenta acerca da dificuldade maior para alteração das normas que formam a Constituição, e ainda, sobre a impossibilidade de algumas serem modificadas, assinalando que “todos esses fatos demonstram que, no espírito unânime dos povos, uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum.”26 Nesse aspecto, Lassale trabalha com uma idéia muitas vezes resgatada por vários autores, afirmando que a Constituição não é uma lei como as outras, por ser uma lei fundamental da Nação. 24Cf. LASSALE, op. cit. 25Ibid., p. 25-26. 26Ibid., p. p.27. 14 A concepção política de Constituição foi articulada por Schmitt - Constituição como decisão política fundamental27. Schmitt explica que a Constituição é válida porque decorre de uma vontade existente, uma vontade política, considerando que, antes dela, já existia uma comunidade política, uma Nação. Já no sentido jurídico, diversos são os expoentes que se poderia apreciar nesse estudo, de forma que possíveis ausências não correspondem à desconsideração mas simplesmente ao corte metodológico necessário. Kelsen, com sua conceituação exclusivamente jurídico-normativa, pretendeu na obra Teoria pura do direito impor à ordem normativa um rigor científico até então nunca visto. Procurou ao extremo apartar o ser, a realidade fática, do dever ser, as normas jurídicas, a fim de realizar um estudo puro das normas jurídicas, no âmbito da validade. A pureza é o princípio metodológico da sua Teoria do Direito, que possui como objeto o estudo do direito positivo como saber autônomo e auto-suficiente, buscando livrar a ciência do direito de todos os elementos a ela estranhos28. Na parte de sua teoria dedicada ao estudo do Direito e do Estado, faz uma correspondência entre estes, assinalando que o Estado é a própria ordem jurídica posta. E, escorando-se nessa premissa, afirma que a Constituição dos Estados tem importância primordial, pois é a norma superior que funda a sua organização interna, sendo mediante a conformidade com o nela estabelecido que as demais normas do ordenamento serão válidas. A doutrina kelseniana considera a norma jurídica válida em si mesma. Põe de lado qualquer referência à realidade social que a envolve e ao seu conteúdo/fundamento filosófico ou ideológico. Assim, uma norma será válida quando elaborada em conformidade com a superior. O controle de constitucionalidade, nesse contexto, é formal, bastando que a norma 27Cf. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial. 2. ed., 1996. 28KELSEN, Hans. Teoria Pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 15 produzida esteja em conformidade com o previsto na Constituição. A interpretação das normas constitucionais, segundo o autor, é de subsunção dos fatos à “moldura” apresentada29. Prosseguindo nessa apertada síntese evolutiva do pensamento constitucional especificamente quanto ao conceito de Constituição, não se pode deixar de voltar a mencionar Hesse, o qual exprimiu avanço considerável nessa seara, entendendo que, embora não desvinculada da realidade, a Constituição não é apenas imposta, possui força normativa. De forma alguma pretende-se aqui encerrar a discussão, mas, em sede de conclusão, recorre-se à idéia de força normativa da Constituição estruturada por Canotilho. Nessa perspectiva, o autor trabalha com dois aspectos essenciais: lei fundamental como instrumento formal e processual de garantia e a noção de que as Constituições podem e devem se constituir em programas ou linhas de direção para o futuro. O constitucionalista português destaca a plurissignificatividade do termo Constituição, assinalando que ele pode adquirir diversos sentidos, a saber: conceito histórico-universal, como fonte de direito, modo de ser da comunidade, organização jurídica do povo, lex fundamentalis, ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito, conceito ideal de constituição. Na esteira do pensamento lusitano, Ruy Samuel Espíndola aponta o fato de que o conceito que tem o condão de englobar todos os sentidos anteriores é o de “Constituição como Constituição escrita”. Este se assenta, ainda, sobre quatro outros sentidos: Constituição instrumental (como texto ordenador, sistemático e racionalmente da comunidade política), Constituição formal (como fonte formal do Direito Constitucional), Constituição normativa (com intenção específica, qual seja, criação de normas jurídicas) e Constituição material (abrangência de todo o conjunto de todas as normas constitutivas e reguladoras das estruturas 29 KELSEN, op. cit., 309 e segs. 16 fundamentais do Estado e da Sociedade, seja constante do seu texto, seja implícita, ou prevista em outras leis) 30. Nesse passo de desenvolvimento, não mais se debate a juridicidade, vinculatividade e atualidade das normas constitucionais, pois se almeja soterrar a ultrapassada versão de Constituição como simples concentrado de princípios políticos, com eficácia puramente diretiva, sendo efetivada pelo legislador quase que de forma discricionária. No momento atual, impõe-se sua eficácia normativa, entendendo-se por Constituição “um complexo normativo ao qual deve ser assinalada a função de verdadeira lei superior do Estado, que todos os seus órgãos vincula.”31 Não discrepando de nenhuma acepção conceitual, mas, ao inverso, cotejando-as, Canotilho apresenta a necessidade de um conceito de “Constituição constitucionalmente adequado”, para o que categoricamente denota “a compreensão de uma lei constitucional só ganha sentido útil, teorético e prático, quando referida a uma situação constitucional concreta, historicamente existente num determinado país.”32 A importância da contextualização do conceito de Constituição pode ser compreendida no sentido de que aquele documento representa indubitavelmente um espelho da vida do País. Esclarece Bonavides que o real problema do Direito Constitucional de nossa época encontrase justamente em como juridicizar o Estado e de que maneira estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais, a fim de garantir direitos sociais elementares, tornando-os efetivos.33 30ESPÍNDOLA, op. cit., p. 88. 31CANOTILHO; MOREIRA, op. cit., p. 43. 32CANOTILLHO, J.J.G. Direito constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 75. 33BONAVIDES, op. cit., p. 338. 17 1.1.2 Conteúdo de Constituição A compreensão da Constituição como ordem normativa formada por regras e princípios perpassa essencialmente pela apreciação do corpus constitucional.34 Em sentido amplo, como estruturação do poder ou do corpo político, pode-se dizer que a totalidade dos países possuem Constituição, entretanto, nem todos tem um documento assim denominado. Canotilho acrescenta que não são muitos os Estados providos de um documento constitucional em conformidade com as noções do constitucionalismo.35 A partir do inconformismo em aceitar que para a existência de uma Constituição seriam necessários apenas os requisitos formais, sem a preocupação com o conteúdo deste instrumento normativo superior, surgiu a Teoria Material da Constituição. A Constituição não pode ser vista unicamente como instrumento jurídico-formal, mas se deve, obrigatoriamente, destacar a importância jurídica de seu conteúdo. O excesso de formalismo, antes justificável como forma de garantir a proteção do indivíduo contra o absolutismo, transforma a Constituição em um instrumento vulnerável a qualquer conteúdo, desde que obedecidas as formalidades para a sua elaboração, tornando-se de efeito, mera folha de papel. Sob esse enfoque, para que uma Constituição possa ser considerada verdadeira é imprescindível que seu “conteúdo obedeça aos princípios fundamentais progressivamente revelados pelo constitucionalismo.”36 Deparando-se com esse ponto específico, Canotilho faz uma de suas afirmações mais destacáveis no sentido que a Constituição elaborada à luz do constitucionalismo deve ter um conteúdo específico, que irá qualificá-la. Em suas palavras: 34Expressão utilizada por J. J. G Canotilho na obra Direito constitucional e teoria da constituição. 35 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina. p. 1094. 36 Ibid. 18 (1) deve formar um corpo de regras jurídicas vinculativas do “corpo político” e estabelecedoras de limites jurídicos ao poder, mesmo ao poder soberano (antidespotismo, antiabsolutismo); (2) esse corpo de regras vinculativas do corpo político deve ser informado por princípios materiasi fundamentais, como o princípio da separação de poderes, a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, a garantia de direitos e liberdades, a exigência de um governo representativo, o controle político e/ou judicial do poder.37 A Constituição normativa pressupõe a idéia de correlação entre o texto e um conteúdo normativo específico, apto a dar-lhe fundamentação e qualificação. Para realizar a Constituição normativa não é suficiente elaborar um documento encartado com regras jurídicas formalmente elevadas a um grau superior; “estas regras têm que transportar ‘momentos axiológicos’ corporizados em normas e princípios dotados de bondade material (garantia de direitos e liberdades, separação de poderes, controle do poder, governo representativo).”38 Essa Constituição, entendida como normativa desde que presente o conteúdo fundamental e a legitimidade concedida pelos cidadãos, integra a concepção de Sistema39 Constitucional. Bonavides destaca a importância da idéia de sistema, porquanto o vocábulo Constituição não seria suficiente para abarcar a complexidade da sociedade política. Para este autor, ao inserir a Constituição no Sistema Constitucional evita-se um normativismo extremo e abstrato, afastando as ilações daqueles que desacreditam na eficácia normativa da Constituição.40 A concepção sistêmica traz consigo outras importantes constatações, as quais são bem sintetizadas por Bonavides: A idéia de sistema inculca imediatamente outras, tais como as de unidade, totalidade e complexidade. A Constituição é basicamente unidade, unidade que repousa sobre 37CANOTILHO, op. cit. 38Ibid., p.1095 39Para Norberto Bobbio, sistema é uma “totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência.” Seguindo o entendimento do autor, há sistema jurídico quando as normas de um ordenamento jurídico estão relacionadas coerentemente entre si. In: Teoria do ordenamento jurídico. Traduzido por Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Polis, 1991, p. 71. 40 BONAVIDES, op. cit., p. 79. 19 princípios: os princípios constitucionais. Esses não só exprimem determinados valores essenciais – valores políticos ou ideológicos – senão que informam e perpassam toda a ordem constitucional, imprimindo assim ao sistema sua feição particular, identificável, inconfundível, sem a qual a Constituição seria um corpo sem vida, de reconhecimento duvidoso, se não impossível.41 Atrelando-se a normatividade com a idéia de sistema, a Constituição estabelece uma relação essencial entre o texto e um conteúdo específico, adquirindo um perfil individual, formado pelos valores que entram no sistema, nele vivem e atuam e se projetam da forma mais abrangente possível. Para o desenvolvimento da força normativa da Constituição, além de um conteúdo mínimo preestabelecido, deve-se atentar para a práxis, uma vez que quanto mais o conteúdo de uma Constituição corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro será o desenvolvimento de sua força normativa, de forma que todos os participantes da vida constitucional partilhem a vontade de Constituição, a qual se denota na disponibilidade de sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio, fortalecendo o respeito à Constituição.42 A permanência da Constituição com restrição à possibilidade de alteração em face de suposta necessidade política, acarreta estabilidade que constitui condição fundamental de sua eficácia. A mudança das condições fáticas pode e deve provocar alterações na interpretação da Constituição. Ocorre que tal mudança não pode ser de tal monta a desvirtuar a finalidade de determinada proposição. O sentido da proposição normativa funciona como limite de qualquer mutação43 normativa, da mesma forma que, se da alteração das condições o sentido 41BONAVIDES, op. cit., 130. 42HESSE, op. cit., p. 22. 43Segundo Pedro Lenza “as mutações constitucionais não seriam alterações ‘físicas’, ‘palpáveis’, materialmente perceptíveis, mas sim alterações no significado interpretativo de um texto constitucional. A transformação não está no texto em si, mas na interpretação daquela regra enunciada. O texto permanece inalterado”. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2005. p. 51. 20 de determinada proposição não pode mais ser alcançado, uma reforma44 se torna indispensável. A Constituição deve mostrar capacidade de se adaptar a uma eventual mudança das condicionantes, o que se torna possível com a inclusão de princípios fundamentais, cujo conteúdo específico mostre condições de ser desenvolvido. A constitucionalização de interesses momentâneos leva à necessidade de revisão constante, acarretando, indubitavelmente, o enfraquecimento da força normativa. Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição e uma interpretação pode ser considerada adequada à medida que consegue concretizar de forma excelente o sentido da proposição normativa dentro das condições reais de uma determinada situação. Observados esses cuidados, a Constituição resgata sua juridicidade, sem perder a eficácia de seu conteúdo. A busca pelo equilíbrio entre a força normativa da Constituição, como fator determinante das condutas humanas e a atualidade do seu texto ante às constantes mudanças, de forma a manter a capacidade de impor comportamentos sociais sem se desligar da realidade, torna-se um grande desafio. 1.2 DISTINÇÃO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS As normas contidas no corpo da Constituição podem ser regras ou princípios. Partindo desse entendimento, formulado por Ronald Dworkin e Robert Alexy, torna-se imprescindível estabelecer a diferenciação entre os termos, nesse sentido, assinala Robert Alexy que “a distinção entre regras e princípios constitui um marco de uma teoria normativo-material dos 44Por reforma constitucional pode-se entender “a modificação do texto constitucional através dos mecanismos definidos pelo poder constituinte originário (emendas), suprimindo ou acrescentando artigos ao texto original.” LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2005. p. 51. 21 direitos fundamentais e, com isso, um ponto de partida para responder a questão sobre a possibilidade e os limites de racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais”45. A noção de princípio como espécie de norma jurídica foi desenvolvida no Brasil especialmente por Eros Roberto Grau, o qual, reforçando a tese da normatividade, sobre a diferença entre regras e princípios jurídicos, afirma textualmente serem espécies do gênero norma e ainda que “as regras são aplicações dos princípios”, do que conclui não ser possível a perfeita interpretação das regras sem que se leve em conta os princípios.46 1.2.1 Tipologia dos princípios e das regras A fim de tratar sobre as normas que integram o ordenamento jurídico, inicialmente, é fundamental trazer à baila a obra de Canotilho, para o qual, estudando especificamente o ordenamento português, o sistema jurídico do Estado de direito democrático é um sistema aberto de regras e princípios. Dissecando cada palavra da expressão: é um sistema jurídico porque formado essencialmente por normas; aberto, uma vez que tais normas devem estar aptas a captar as mudanças da realidade que as circunda; normativo, visto que a estruturação se baseia em espécies normativas; e, finalmente, de regras e princípios, pois as normas presentes na Constituição são necessariamente pertencentes a uma das duas categorias.47 A seguir, constatando-se ser o sistema jurídico formado por regras e princípios, faz-se indispensável imiscuir-se na tipologia de cada uma das espécies. Para esse fim, escolheu-se a obra de Canotilho, especialmente pelo aprofundamento dado à matéria. 45Tradução livre do original:“La distinción entre reglas y principios constituye, además, el marco de una teoría normativo-material de los derechos fundamentales y, con ello, un punto de partida para responder a la pregunta acerca de la posibilidad y los límites de la racionalidad en el ámbito de los derechos fundamentales. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 81-82. 46GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 (interpretação crítica). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 133. 47CANOTILHO, op. cit., p. 1123 22 No que se refere aos princípios, o constitucionalista luso os distribui em quatro categorias: a) princípios jurídicos fundamentais; b) princípios políticos constitucionalmente conformadores; c) princípios constitucionais impositivos; d) princípios-garantia. Os princípios jurídicos fundamentais são aqueles histórica e progressivamente inseridos na consciência jurídica, independentemente de terem sido recepcionados expressamente no texto constitucional. Constituem-se em fonte imprescindível para interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito. Tais princípios têm uma “função negativa”, especialmente no que se refere aos “casos limites” (Estado de Direito e de Não Direito, Estado Democrático e Ditadura) e “função positiva”, informando positivamente os atos dos poderes públicos.48 Admitindo essa dimensão simultânea – positiva e negativa – pode-se dizer que esses princípios fornecem diretivas materiais de interpretação das normas constitucionais e, ainda, vinculam o legislador quando da elaboração das leis. Os princípios políticos constitucionalmente conformadores são princípios que “explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte”49. Refletem as concepções políticas inspiradoras da Constituição, traduzindo-se no “cerne político de uma constituição política”50. Dentre eles, pode-se citar os princípios que definem a forma e estrutura do Estado, o regime político, a forma de governo e a organização política em geral. Dos princípios constitucionalmente impositivos se extraem todos os princípios que impõem ao Estado, notadamente ao legislador, o cumprimento e execução de seus fins e tarefas. Em suma, tais comandos estabelecem as linhas mestras da atividade política e legislativa. Por fim, princípios-garantia são aqueles que estabelecem diretamente garantias para os cidadãos. 48CANOTILHO, op. cit., p. 1128. 49Ibid., p. 1130 50Ibid. 23 As regras, por sua vez, fundam-se pela bipartição: 1. regras constitucionais de organização, divididas em: a) regras de competência; b) regras de criação de órgãos; c) regras de procedimento; e 2. regras constitucionais materiais, que podem ser: a) regras de direitos fundamentais; b) regras determinadoras de fins e tarefas do Estado; c) regras constitucionais impositivas; e d) regras de garantias institucionais. Uma primeira tentativa de diferenciação das regras relaciona dois tipos: normas constitucionais organizatórias e normas constitucionais materiais, sendo que as primeiras regulam a organização do Estado e a ordem de domínio, e as segundas traduzem-se nos limites e programas da ação estatal diretamente dirigidos aos cidadãos51. Canotilho considera essa divisão ultrapassada, visto que estabelece um só critério e considera tão-somente uma espécie dotada de caráter material. Ou seja, segundo seu ponto de vista, a parte de organização do poder inserta na Constituição seria despida de qualquer caráter fundamental, podendo ser levada a uma ordenação infra-constitucional. Sobre a força dessa forma de divisão, ressalta que se pode perceber a inserção da idéia de separação Estado- Sociedade, mesmo que de forma sub-reptícia. Então, na essência, o autor português considera que as regras podem ser classificadas unicamente em regras jurídico-organizatórias e regras materiais. As regras de organização, por sua vez, dividem-se em regras de competência, de criação de órgãos e de procedimento. As regras jurídico-organizatórias são aquelas mediante as quais se atribuem certas tarefas a determinados órgãos ou são estabelecidas esferas de competência entre esses órgãos. Canotilho crítica a divisão estanque entre normas de caráter puramente instrumental e de caráter material, ressaltando que as normas definidoras de competência são imbuídas, muitas vezes, de conteúdo material relacionado “não só ao dever de garantir a competência 51 CANOTILHO, op. cit., p. 1131-1132. 24 constitucionalmente fixada, mas também a própria razão de ser da delimitação de competência” 52. As regras de criação de órgãos (orgânicas) objetivam regular a criação ou instituição constitucional de certos órgãos. Destaque-se a estrita ligação entre essas e as normas acima, uma vez que pela espécie normativa é possível a criação e a delimitação de competência, de forma a fundir as duas espécies. As regras de procedimento, por sua vez, ganham abrigo na Constituição nos casos em que o procedimento é elemento essencial para formação da vontade política, sendo, porém, seu detalhamento remetido à legislação infra-constitucional. Como exemplo pode-se mencionar as regras de direito eleitoral, procedimento de revisão da Constituição, de destituição do Presidente da República, controle de constitucionalidade, dentre outros. As regras jurídico-materiais podem ser esquadrinhadas em regras de direitos fundamentais, regras de garantias institucionais, regras determinadoras de fins e tarefas do Estado e regras constitucionais impositivas. As regras de direitos fundamentais são “todos os preceitos constitucionais destinados ao reconhecimento, garantia ou conformação constitutiva de direitos fundamentais.”53 As regras de garantias institucionais têm o fito de proteger as instituições, tanto públicas quanto privadas, e os cidadãos, salvaguardando-os das ingerências desproporcionais ou coativas. É comum a confusão dessas normas com àquelas que regulam determinadas exigências ou requisitos aos titulares de certas funções, como os preceitos referentes à independência e inamovibilidade dos juízes, que vinculam os servidores ao interesse público e os relacionados às forças armadas. 52CANOTILHO, op. cit., 1133. 53Ibid, p. 1134. 25 As regras determinadoras de fins e tarefas do Estado têm a função de fixar global e abstratamente os fins e as missões do Estado. Essas regras devem sempre ser associadas aos princípios constitucionais impositivos, uma vez que a distinção entre essas duas espécies normativas pode ser vislumbrada apenas de forma gradual, não existindo critérios seguros para uma determinação rigorosa. Por fim, as regras constitucionais impositivas são também estritamente relacionadas com os princípios impositivos. Essas regras podem ser analisadas em dois sentidos: amplo, determinando tarefas e diretivas materiais ao Estado, ou restrito, assumindo caráter de imposições constitucionais de forma permanente e concreta. Nessa última categoria, o autor ainda apresenta dois subgrupos: imposições legiferantes e ordens de legislar. Verificadas as tipologias das regras e dos princípios com esteio nos ensinamentos de Canotilho, volve-se a atenção para os critérios hábeis a proporcionar a diferenciação entre as espécies normativas. 1.2.2 Critérios para distinção entre regras e princípios O estudo acurado dos princípios constitucionais não pode deixar à margem as regras, tendo em vista as conexões inegáveis. No pós-positivismo, a caracterização das regras parte necessariamente de sua diferenciação dos princípios, uma vez que autores expressivos tendem a reforçar a normatividade destes últimos, realçando de plano que os princípios e as regras são espécies normativas, porém, dotadas de características diferentes. Adotando como elemento diferenciador a generalidade, a primeira menção distintiva entre princípios e regras foi proposta por Boulanger, para o qual “a generalidade da regra jurídica não se deve entender da mesma maneira que a generalidade de um princípio”. Demonstra, ainda, “que a regra é geral porque estabelecida para um número indeterminado de 26 atos ou fatos. Isto não obstante, ela é especial na medida em que regula senão tais atos e tais fatos: é editada para ser aplicada a uma situação jurídica determinada”.54 Em um momento posterior, Dworkin, com o fito de lançar um ataque frontal ao positivismo, utiliza como alvo as idéias de Hart para, na obra Levando os direitos a sério, estabelecer mais dois critérios de diferenciação: tudo ou nada e peso ou importância. Segundo ele, as regras são aplicáveis na forma de tudo ou nada. Assim, efetivando-se os fatos por elas descritos, afirma-se a validade da regra ou, caso contrário, deve a mesma ser afastada, com a declaração de invalidade. Os princípios jurídicos, por sua vez, atuam de forma diversa, “mesmo aqueles que mais se assemelham às regras não se aplicam automaticamente e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação se manifestam”55. No outro critério, sustenta Dworkim que, ao contrário dos princípios, não se pode dizer que as regras prevaleçam umas sobre as outras em função de seu peso ou importância, ou ainda, possam ser aplicadas em um caso e no outro não. No plano funcional seria autorizado afirmar que uma regra pode ser considerada mais importante que outra, no sentido de tratar de assunto considerado fundamental. Não se pode dizer, entretanto, que uma é mais importante que outra dentro do ordenamento, de forma que, em caso de conflito, uma prevaleceria por seu peso.56 As regras, quando postas em conflito, prevalecem no campo da validade, ou seja, considerando a aplicabilidade no caso concreto, somente uma pode incidir sob pena de antinomia. Nessa esteira, afirma Dworkin que “se duas regras entrarem em conflito, uma 54apud BONAVIDES, op. cit., p. 239. 55DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39. 56Ibid., p. 43. 27 delas não pode ser considerada válida. A decisão acerca de qual será válida e qual deverá ser abandonada ou reformada fica sujeita a considerações exteriores às próprias regras”57. A fim de que se resolva o conflito estabelecido entre duas regras, é preciso – ressalta Dworkin – que o sistema possa regular o conflito por outra regra, especialmente se for proferida por uma autoridade pertencente à hierarquia superior, que tenha inaugurado o mundo jurídico primeiro, que seja mais específica, ou ainda, que se apoie no princípio considerado mais importante58. Em outras palavras, diante de um embate entre regras, é preciso recorrer aos critérios clássicos de resolução de antinomias (hierárquico, cronológico e de especialidade), o que acarreta necessariamente na escolha de apenas uma delas para governar o caso59. O conceito de princípio de Dworkin foi retomado e desenvolvido por Alexy, merecendo destaque, por seu extremo valor teórico, o estudo acerca dos critérios para a distinção entre as espécies de normas jurídicas. A partir da conjugação de regras e princípios como espécies normativas, Alexy esclareceu de plano que a divergência entre ambos nada mais é que a distinção entre duas normas. Nessa acepção, a generalidade é o elemento discriminante mais usual para a diferenciação e, segundo ele, os princípios são normas providas de uma alto grau de generalidade, sendo que as regras, por sua vez, possuem um grau de generalidade mais baixo60. A seguir, ele passa ao estudo de outros critérios que foram adotados por diversos autores, destacando o da determinabilidade dos casos de aplicação (Esser), da origem, da diferenciação das normas criadas e crescidas (Schuman e Eckhoff), da explicitação do teor da valoração (Canaris), da relação com a idéia de Direito (Larenz) ou com a lei suprema do 57DWORKIN, op. cit., p. 43 58Ibid., p. 47. 59SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004. p. 84. 60ALEXY, op. cit., p. 83. 28 Direito (H. J. Wolff) e o da importância que desempenham na ordem jurídica (Peczenik e Ziembinski)61. Analisando-os, Alexy elabora três teses definidoras da distinção pretendida. A primeira atesta que nenhum dos critérios sozinho é capaz de estabelecer a diferença entre regras e princípios. A segunda, também por ele combatida, escora-se na graduação, ou seja, busca na utilização do critério da generalidade o fundamento para distinção. A terceira, por ele abraçada, assevera que a distinção entre regras e princípios não se dá apenas quanto ao grau, mas especialmente em função de qualidade.62 Como bem afirmado pelo autor, tal critério gradualista-qualitativo não está inserido nos anteriormente por ele estudados, por trazer um traço fundamentalmente distinto. Assim, entendendo os princípios como “mandamentos de otimização”, reconhece-os como normas de otimização, as quais podem ser cumpridas em diferentes graus. A medida imposta de execução não está atrelada somente às condições fáticas, mas também às jurídicas. Esse é o ponto central de diferença defendido por Alexy, haja vista que se uma regra é válida ela deve ser cumprida estritamente, nem mais nem menos, ao passo que a aplicabilidade em parte ou a não incidência de um princípio em determinado caso não retira sua eficácia. Também no que se refere à busca pela solução do caso concreto por meio dos princípios, Alexy afastou-se das idéias de Dworkin, o qual se baseou na figura do juiz Hércules, ser dotado de qualidades ideais, capaz que encontrar a resposta correta para qualquer questionamento, com base em seus princípios morais. Alexy, por sua vez, firma a 61Como visto, existem vários critérios para a distinção entre regras e princípios. Para um maior aprofundamento sobre o tema, pode-se consultar: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1998. 62ALEXY, op. cit., p. 85-86. 29 necessidade de estabelecer procedimentos racionais para encontrar a resposta adequada nas questões constitucionais difíceis. Pode-se inferir que, ao contrário das regras que possuem fixações normativas tornando insustentável a contraditoriedade, os princípios, em caso de conflito, serão ponderados e harmonizados entre si, na medida em que possuem apenas “exigências”, a fim de alcançar o equilíbrio por “uma solução que, à luz das circunstâncias concretas, sacrifique o mínimo possível cada um dos interesses salvaguardados pelos princípios em confronto, pautando-se pela proporcionalidade e tendo como bússola a axiologia constitucional.”63 Demonstrados os critérios e os fundamentos utilizados para diferenciação entre princípios e regras, destaca-se a fundamental importância da presença de ambos no corpo da Constituição. Os princípios são indispensáveis porque, além de refletirem os valores mais caros da sociedade, conferem à Constituição mais flexibilidade, de modo a melhor se adaptar às mudanças que se apresentarem. Os princípios, como visto, dão abertura à Constituição, tornado-a um espaço livre para complementação, entretanto, é inarredável que ao lado deles existam as regras, para que a abertura do sistema não prejudique sua segurança e estabilidade.64 Parte-se, nesse momento, para a tentativa de conceituar princípios jurídicos na tendência chamada de pós-positivismo, na qual são entendidos como normas jurídicas vinculantes, dotadas de efetiva juridicidade. 1.3 CONCEITO DE PRINCÍPIOS JURÍDICOS O conceito de princípio jurídico vem, a partir da década de cinqüenta, proporcionando à comunidade acadêmica uma série de excelentes estudos. Autores como Esser, Boulanger, 63SARMENTO, op. cit., p. 87 64Ibid., p. 88 30 Dworkin e Alexy conclamam a normatividade dos princípios em bases teóricas, dogmáticas e metodológicas em muito superiores às anteriormente consagradas, que atestavam uma mera posição subsidiária e integrativa, de interpretação do direito. A essa tendência tem-se denominado pós-positivimo. No Direito Constitucional essa manifestação teórica ganhou extremo prestígio e inspirou profundas considerações, denominando-se os princípios jurídicos na posição póspositivista de princípios constitucionais. Nesse ínterim, conceituar, classificar ou definir princípios jurídicos em adequada base metodológica, de forma a permitir sua competente interpretação, compreensão e aplicação, traduz-se em um árduo desafio aos juristas. Etimologicamente, princípio significa o começo, a origem, a base. Esse não é, no entanto, o único significado que dele se pode extrair. A noção da palavra princípio deriva da linguagem da geometria, relacionando-se, assim, com começo, ou melhor, com o sentido de premissa sob a qual se desenvolve todo um sistema. Na lição de Ruy Samuel Espíndola, princípio é: a estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou normas por uma idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam.65 Nessa mesma linha de raciocínio, vale destacar as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, que define princípio jurídico como: mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para 65ESPÍNDOLA, op. cit., p. 47-48. 31 sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.66 Ferraz Jr. entende que os princípios “são enunciados diretores da atividade humana juridicamente considerada”67. Dessa forma, princípios, no sentido jurídico, são proposições normativas básicas, gerais ou setoriais, positivadas ou não, que revelam os valores fundamentais do sistema jurídico. Inauguralmente, o traço da normatividade dos princípios foi apresentado em 1952 por Cristafulli, que conceituou: Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares menos gerais, das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas, efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.68 Bonavides ressalta a investigação doutrinária realizada por Ricardo Guastini, o qual coletou, dentre a jurisprudência e obras doutrinárias, seis distintos conceitos de princípio, sempre com a atenção voltada à característica fundamental da normatividade. O vocábulo princípio é apresentado como norma imbuída de um alto grau de generalidade, indeterminação, com caráter pragmático, que ocupa um lugar elevado em relação às outras normas, com função notável e, ainda, dirigida aos órgãos de aplicação69. A doutrina, de um modo geral, confere significados semelhantes à palavra princípio, entendida nesse contexto.70 66MELLO, Celso A.B. Ato administrativo e direito dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 87-88. 67FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 141. 68CRISTAFULLI, V. La costituzione e le sue disposizioni do principio. Milão, 1952. p. 15, apud BONAVIDES, op. cit., p. 257. 69BONAVIDES, op. cit., p. 255 segs. 70Sobre o tema, destaca-se: SANTOS, Otoniel Ferreira dos. A aplicabilidade dos princípios constitucionais. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados,São Paulo, ano 24, v. 177, p. 43-52, jul./ago. 2000. 32 A normatividade perfaz a união entre os conceitos demonstrados, considerando que a noção de constitucionalismo moderno, bem como de Direito Constitucional, vem sendo determinada pela positivação constitucional dos princípios, pela qual “os princípios têm positividade, vinculatividade, são normas, obrigam, têm eficácia positiva e negativa sobre comportamentos públicos ou privados bem como sobre a interpretação e aplicação de outras normas, como as regras e outros princípios derivados de princípios de generalização mais abstrata”.71 Seguindo os ensinamentos de Bonavides, a normatividade dos princípios atravessou três fases distintas. Na primeira, jusnaturalista, os princípios ocuparam uma posição abstrata e metafísica, sendo reconhecidos como inspiradores de um ideal de justiça, o que lhes conferia uma normatividade senão nula, duvidável. Na segunda, juspositivista, os princípios são inseridos nos Códigos com força normativa subsidiária às leis. Nesse sentido, não são encarados como superiores às regras e sim dedutíveis delas, com o fito de suprir lacunas. A terceira fase, pós-positivista, vem sendo construída nas últimas décadas, escorada na idéia da hegemonia axiológico-normativa dos princípios. Nesse período, eles adquirem o status de norma jurídica vinculante, eficazes e vigentes, muito além da mera função integrativa inicialmente a eles conferida.72 O entendimento da normatividade dos princípios proclama a tendência irrefutável que leva sua valoração e eficácia como normas-chave de todo o ordenamento jurídico73. A importância e a força dos princípios não está relacionada somente com sua aplicabilidade às relações que formam o respectivo objeto mas também a sua eficácia interpretativa, que advém notadamente da função construtiva.74 71ESPÍNDOLA, op. cit., p. 55. 72BONAVIDES, op. cit., p. 232-238. 73Ibid., p. 257. 74Ibid., p. 245. 33 Um ponto conflituoso nesse tema é a análise da normatividade ou não dos princípios chamados implícitos, assim denominados por não estarem expressos na Constituição ou terem se consagrado de forma consuetudinária. Sobre a questão, acata-se aqui a síntese elaborada por Faissal Yunes Junior: Não importa se o princípio é implícito ou explícito, o que importa é se ele existe ou não existe. Se existe, o jurista está capacitado a identificá-lo e discerni-lo. O princípio explícito não é necessariamente mais importante do que o implícito, tudo vai depender do seu âmbito de abrangência.75 Apesar da importância do tema, deixa-se de lado as possíveis digressões para firmar o entendimento de que os princípios implícitos, notadamente no âmbito do Direito Público, podem ser considerados normas jurídicas com aplicação imediata, superadando visão de que se tratariam de simples normas programáticas. Assim, realçada a normatividade alcançada pelos princípios, é preciso perquirir acerca das funções gerais por eles desempenhadas, a fim de bem compreender a abrangência desta espécie normativa. 1.3.1 Funções dos princípios Ao jurista não basta conhecer os princípios, sendo essencial saber para quê eles servem, ou melhor, necessário é compreender qual a função dos princípios para que sejam aplicados corretamente. Como já dito, os princípios, ao lado das regras, são normas jurídicas. Desempenham, contudo, papel diverso no sistema normativo. As regras, por descreverem fatos hipotéticos, possuem a nítida função de regular, direta ou indiretamente, as relações jurídicas que se 75YUNES JR., Faissal. Sistema Constitucional Tributário. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, v. 24, n. 24, p. 172, jul./set. 1998. 34 enquadrem nas figuras por elas descritas. Já os princípios são normas generalíssimas dentro do sistema. Bonavides ressalta que a posição de fonte subsidiária relegada ao terceiro grau nos Códigos, a partir das Constituições promulgadas na segunda metade do século XX, restou ultrapassada, tendo os princípios se tornado fonte primária de normatividade, incorporando na ordem jurídica os valores supremos de uma sociedade constitucional.76 Tradicionalmente apontam-se três funções aos princípios: fonte subsidiária, fundamentadora e orientadora da interpretação.77 Na qualidade de fonte subsidiária do direito, os princípios serviriam como elemento integrador ou forma de superação de lacunas do ordenamento jurídico, na hipótese de ausência da lei aplicável ao caso concreto. José de Albuquerque Rocha, sobre a referida função, afirma que: (...) nos casos de lacunas da lei os princípios atuam como elemento integrador do direito. A função de fonte subsidiária exercida pelos princípios não está em contradição com sua função fundamentadora. Ao contrário, é decorrência dela. De fato, a fonte formal do direito é a lei. Como, porém, a lei funda-se nos princípios, estes servem seja com guia para a compreensão de seu sentido (interpretação), sejam como guia para o juiz suprir a lacuna da lei, isto é, como critério para o juiz formular a norma ao caso concreto78. Essa compreensão, contudo, encontra-se superada, uma vez que conferida normatividade aos princípios estes perdem o caráter supletivo, passando a impor uma aplicação obrigatória. Por outro lado, talvez, empiricamente, a função precípua dos princípios seja a de servir de orientação ao operador do direito. Isso porque “o ponto de partida do intérprete há que ser 76BONAVIDES, op. cit., p. 283. 77ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 46. 78Ibid.,p. 47 35 sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins.”79 Assim, a função orientadora da interpretação desenvolvida por meio dos princípios, torna-se conseqüência lógica de sua função fundamentadora do direito. De fato, se as leis são informadas ou fundamentadas nos princípios, então de acordo com eles devem ser interpretadas, considerando que são eles que dão sentido às regras.80 Nas palavras de Sundfeld: a) é incorreta a interpretação da regra, quando dela derivar contradição, explícita ou velada, com os princípios; b) quando a regra admitir logicamente mais de uma interpretação, prevalece a que melhor se afinar com os princípios; c) quando a regra tiver sido redigida de modo tal que resulte mais extensa ou mais restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva, respectivamente, para calibrar o alcance da regra com o princípio. Na ausência de regra específica para regular dada situação (isto é, em caso de lacuna), a regra faltante deve ser construída de modo a realizar concretamente a solução indicada pelos princípios.81 A cada dia, a função interpretativa dos princípios vem ganhando a importância devida. Atentou-se para o fato que a lei (regra), como norma geral e abstrata, pode levar à injustiça. E, nesse cenário, destaca-se outro realce dos princípios: servir justamente para dar o norte ao hermeneuta, orientando-o nessa difícil atividade de adaptação do direito posto às novas situações jurídicas que vão surgindo. Realmente, os princípios, em relação às regras, têm uma grande vantagem: a abertura, são capazes de captar as mudanças da realidade e estar conectados às concepções mutáveis da verdade e da justiça. O princípio, enquanto "mandamento nuclear de um sistema"82, exerce a importante função de fundamentar a ordem jurídica em que se insere. Os princípios são, por conseguinte, 79BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 141. 80ROCHA, op. cit., p. 47. 81SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 148. 82MELLO, op. cit., p. 230. 36 enquanto valores, "a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada." 83 Corrobora Bobbio: os princípios, até por definição, constituem a raiz de onde deriva a validez intrínseca do conteúdo das normas jurídicas. Quando o legislador se apresta a normatizar a realidade social, o faz, sempre, consciente ou inconscientemente, a partir de algum princípio. Portanto, os princípios são as idéias básicas que servem de fundamento ao direito positivo. Daí a importância de seu conhecimento para a interpretação do direito e elemento integrador das lacunas legais.84 Percebe-se, dessa maneira, que os princípios embasam as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e expressam os valores superiores que inspiram a criação ou reorganização de um Estado, fixando os alicerces e traçando as linhas mestras das instituições, dando-lhes o impulso vital inicial85, de sorte que, ruindo o princípio, há a destruição de todo o "prédio normativo" que nele está embasado. São, pois, "qualitativamente a viga mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma constituição" 86. E assim, "as normas que se contraponham aos núcleos de irradiação normativa assentados nos princípios constitucionais, perderão sua validade (no caso da eficácia diretiva) e/ou sua vigência (na hipótese de eficácia derrogatória), em face de contraste normativo com normas de estalão constitucional"87. É importante salientar que os princípios, enquanto fundamentos vinculantes de conduta, pautam não somente a ação do legislador constituído, mas também do administrador, do juiz e de todas as pessoas (físicas e jurídicas, públicas e privadas) que compõe a sociedade política, no sentido de: (...) de qualificar, juridicamente, a própria realidade a que se referem, indicando qual a posição que os agentes jurídicos devem tomar em relação a ela, ou seja, apontado o 83BONAVIDES, op. cit., p. 254. 84BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 7. ed. Brasília: UnB, 1996. p. 47. 85BARROSO, op. cit., p. 146. 86BONAVIDES, op. cit., p. 265. 87PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 14. 37 rumo que deve seguir a regulamentação da realidade, de modo a não contravir aos valores contidos no princípio" e, tratando-se de princípio inserido na Constituição, a de revogar as normas anteriores e invalidar as posteriores que lhes sejam irredutivelmente incompatíveis."88 Pode-se, dizer, dessa forma, que os princípios têm eficácia positiva e negativa: (...) por eficácia positiva dos princípios, entende-se a inspiração, a luz hermenêutica e normativa lançadas no ato de aplicar o Direito, que conduz a determinadas soluções em cada caso, segundo a finalidade perseguida pelos princípios incindíveis no mesmo; por eficácia negativa dos princípios, entende-se que decisões, regras, ou mesmo, sub-princípios que se contraponham a princípios serão inválidos, por contraste normativo.89 Os princípios atuam ainda como limites de atuação ao jurista. Em outras palavras, no mesmo passo em que funcionam como vetores de interpretação, têm como função limitar a vontade subjetiva do aplicador do Direito, vale dizer, os princípios estabelecem balizamentos dentro dos quais o jurista exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto90. Nessa esteira, pode-se dizer que os princípios funcionam também como fonte de legitimação (padrão de legitimação constitucional) da decisão. Assim, à medida que, por exemplo, o magistrado buscar torná-los mais eficazes, mais legítima será a decisão. O pós-positivismo proclama a multifuncionalidade dos princípios. E Canotilho, nessa sendeira, apresenta as funções dos princípios conjugando as tradicionais com aquelas percebidas na evolução do pensamento constitucional, quais sejam: normogênica e sistêmica.91 Indo a fundo no estudo acerca das funções dos princípios, Luiz Henrique Urquhart Cademartori assinala que a função sistêmica fixa o entendimento deles como balizas do ordenamento jurídico, servindo como diretivas de organização do sistema e a normogênica 88ROCHA, op. cit., p. 47. 89ESPÍNDOLA, op. cit., p. 55. 90BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 256. 91CANOTILHO, op. cit., p. 169. 38 parte da idéia de princípios como fundamento do ordenamento jurídico e, assim, são normas jurídicas e deles pode-se produzir outras92. A função normogênica significa que os princípios constitucionais são predeterminantes do regramento jurídico, isto é, constituem a própria ratio ou os fundamentos da ordem jurídica: são os vetores que devem direcionar a elaboração, o alcance e a aplicação das normas jurídicas. Por isso, todas as normas devem obrigatoriamente manter identidade e coerência de conteúdo com os princípios constitucionais. Pela força normativa atribuída aos princípios, não se pode admitir que suas funções93 sejam resumidas à condição de instrumento supletivo em caso de lacuna de lei ou direção a ser seguida na aplicação das demais normas. Na verdade, "os princípios não são meros acessórios interpretativos. São enunciados que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos na lei, aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos"94. Com a inserção dos princípios nos textos constitucionais a sua força vinculante impõe ao aplicador do direito sua observância sempre. Havendo, em um caso concreto, conflito entre uma lei (regra) e um princípio constitucional, este é que deverá ser aplicado. Doravante, colocados na esfera jurídico-constitucional, os princípios, em grau de positivação, encabeçam o sistema, guiam e fundamentam todas as demais normas que a ordem jurídica institui e, finalmente, tendem a exercitar a função axiológica vazada em novos conceitos de sua relevância"95. 92CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. A discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito. Curitiba: Juruá, 2003. p. 83. 93Ainda sobre as funções dos princípios conferir: SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. A função dos princípios constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, ano 7, n.13, p. 156-166, jan./jun. 2004. 94PORTANOVA, op. cit., p. 14. 95BONAVIDES, op. cit., p. 263. 39 A Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB, publicada em 1988, muito bem captou a importância dos princípios ao estatuir categoricamente no §2º de seu artigo 5º que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Diante dessas considerações e especialmente pelo peso da doutrina que as sustentam, outra não pode ser a conclusão senão que os princípios são normas jurídicas superiores por encamparem os ideais mais importantes do povo, podendo ser exercidos diretamente os direitos deles decorrentes. 1.3.2 Colisão entre princípios Grau coloca o problema do conflito entre princípios e regras no plano das chamadas antinomias jurídicas. A colisão entre regras apresenta-se como antinomias jurídicas próprias e a de princípios, antinomias jurídicas impróprias.96 A classificação entre antinomias próprias e impróprias, escorada na obra de Norberto Bobbio, origina-se da constatação de que, juntamente com o significado usual dado ao termo autonomia (choque entre duas normas incompatíveis), é possível perceber o fenômeno também em relação a outras situações.97 Bobbio distinguia as impróprias em antinomias de princípio, de avaliação e teleológicas. A primeira, diretamente relacionada com este estudo, refere-se ao fato de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores conflitantes, sendo que “não são antinomias propriamente ditas, mas podem dar lugar a normas incompatíveis”.98 96GRAU, op. cit., p. 116-117. 97BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 8. ed. Tradução de Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 89-90. 98Ibid, p. 90. 40 Quando uma regra entre em conflito com um princípio, a resolução, no entendimento de Alexy, é mais facilmente encontrada, uma vez que pela hierarquia mais elevada ocupada pelos princípios, eles têm aplicação preferencial, tanto sobre regras infra como constitucionais, até por terem um grau de generalidade mais baixo. Já o conflito entre regras, por sua vez, tendo em vista a posição igual quanto à hierarquia, se resolve no âmbito da validade. Ou seja, sob pena de antinomia, não é possível que duas regras sejam consideradas válidas para regular o mesmo caso concreto. Diante dessa situação limite, uma das duas deverá ser necessariamente afastada do ordenamento, salvo a inserção de uma cláusula de exceção.99 Por outro lado, a tensão percebida entre dois princípios não se resolve no campo de validade e, sim, no axiológico. Não se aceita que determinado princípio possa ser declarado inválido unicamente porque não é aplicável a um caso específico. Na verdade, ele apenas recua frente ao princípio de maior peso. Nesses casos, segundo Dworkin, o aplicador do direito opta por um dos princípios sem que o outro, por conseguinte, seja rechaçado do sistema ou deixe de ser aplicado a outros casos que comportem sua aceitação. Na colisão entre princípios deve-se considerar toda a situação fática e jurídica que envolve o caso para que se possa determinar qual princípio que melhor atende ao caso apreciado. A resolução, pois, não se opera com a retirada do princípio afastado do ordenamento, nem tampouco com a inserção de cláusula de exceção, e sim utilizando a chamada “lei de colisão”, a qual estabelece uma relação de “precedência condicionada” eficaz para o conjunto fático e jurídico que envolve o caso específico, de forma que, havendo modificação no quadro, tal precedência poderá ser alterada100. 99ALEXY, op. cit., p. 86. 100Ibid., p. 87. 41 Tal alteração de precedência quer dizer que, dependendo da situação, várias soluções e decisões podem ser alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras recusando101. A qualidade de poder avançar ou recuar, sem perder a validade ou eficácia, dependendo da situação posta em debate, é que concede aos princípios e reflete na Constituição uma textura aberta, capaz de amoldar-se à realidade mutante, bem como de resolver os conflitos de forma adequada. A compreensão da normatividade dos princípios constitucionais é pressuposto para estudar a força que reveste estas espécies normativas no que tange à regulação de comportamentos e imposição de restrições à atuação do legislador infra-constitucional. No Estado Constitucional, o poder do Estado está sujeito à Constituição, não podendo agir de forma desregrada, mas tão-somente na esfera traçada pelas limitações impostas pelos próprios cidadãos, limitações estas que, em muitos casos, assumem a forma de princípios. O Estado Constitucional102 constitui-se em uma versão do Estado de Direito e não como forma atual estanque da evolução. Exige, porém, para sua configuração, algumas alterações nos conceitos por aquele arraigados, em especial a superação do positivismo jurídico com a redefinição do princípio da legalidade. Nessa concepção, a legalidade é quebrada em dois aspectos que se auto-completam: legalidade em sentido lato, mera legalidade ou validade formal (predeterminação pela lei dos titulares e das formas de exercício de todo o poder) e legalidade em sentido estrito ou validade substancial (pré- 101ALEXY, op. cit., p. 89. 102Sobre o assunto, consultar: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: lei, derechos y justicia. Trad. Marina Goscón. Madrid: Trotta, 1995; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1998; MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002; CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional. Curitiba: Juruá, 2001. 42 estabelecimento, mediante obrigações e proibições, também das matérias de competência e dos critérios de decisão). Especificamente com base na obra de Ferrajoli103, o Estado Constitucional pode ser entendido como a junção da legalidade em sentido amplo e estrito, atribuindo-se, portanto, ao conteúdo da norma um status diferenciado, de estrema relevância, tanto nas questões em que se deve decidir quanto nas que não pode, nem por maioria, como é o caso de eliminação formal de algum direito fundamental do cidadão. O mesmo autor aponta o conteúdo substancial necessário que deve possuir a Constituição para que seja aceita como essência para a consecução do Estado Constitucional a partir dos limites por ela impostos104. Na mesma esteira, Zagrebelsky salienta que a unidade do ordenamento repousa num conjunto de valores e princípios que possuem um consenso social suficientemente amplo. Em observância a tais valores e princípios, as Constituições atuais tentam corrigir esses efeitos destrutivos da ordem jurídica mediante a previsão de um direito mais alto, munido de força obrigatória inclusive para o legislador. A superação da idéia de que os mandamentos constitucionais seriam normas programáticas, desprovidos de aplicabilidade imediata, bem como a da redução das funções dos princípios à interpretação e orientação das leis leva a proclamação da Constituição como ordem normativa formada por regras e princípios, aberta no sentido de ser capaz de captar as mudanças da realidade que a circunda e dotada de caráter imperativo, cujos comandos podem ser tutelados em juízo quando não voluntariamente obedecidos. Especificamente no Brasil, onde o ordenamento se alicerça sobre uma Constituição fundada em princípios como da dignidade humana, dotada de um capítulo dedicado aos 103FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 104Em termos muito assemelhados aos trazidos quando da análise do conteúdo da Constituição. 43 direitos fundamentais, afirmar com ênfase sua normatividade irradiante é medida infastável na busca pela justiça. Com a fixação da premissa da normatividade das regras e princípios inseridos na Constituição, é possível assinalar que essas normas além de garantirem direitos também funcionam como limites de atuação. Tais limites, especialmente na seara do direito tributário, vêm ao encontro da proteção do cidadão. No capítulo seguinte, será apreciado o sub-sistema Tributário Constitucional, que, inserido no Sistema Constitucional, deve com ele se harmonizar. Nesse sub-sistema a atenção primordial volta-se às imunidades e aos princípios constitucionais de limitação ao exercício da competência tributária, os quais atuam como uma moldura protetiva dos contribuintes contra imposições tributárias desvinculadas dos objetivos fundamentais da Nação. O conjunto das limitações e imunidades tributárias atua no sentido de, dentre outros aspectos, estabelecer uma tributação mais justa. E, considerando que valores primordiais da Nação encontram-se sufragados no corpo na Constituição, sem sombra de dúvida, a realização da justiça é um dos mais caros. 44 2 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS À COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA A evolução da teoria constitucional, conforme demonstrado no capítulo anterior, foi determinante para a concentração dos direitos, garantias e limites de uma forma geral no corpo da Constituição. Ainda mais, veio a afirmar a normatividade dos princípios constitucionais e sua função irradiante sobre toda a ordem jurídica. A Constituição, por essa perspectiva, disciplina também a imposição tributária, abrandando a idéia de Poder, transformando-o em Competência, como será visto a seguir. 2.1 PODER DE TRIBUTAR E COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA Em razão da soberania ou poder de império exercido pelo Estado sobre as pessoas e coisas no seu território, tem ele também a possibilidade de direito e de fato de exigir tributos. Nessa perspectiva, Balthazar constata que “ao longo da História, independentemente das diversas formas pelas quais passou o Estado, a busca de receita sempre foi uma preocupação dos governantes.”105 Esse poder, entretanto, não é absoluto. O Estado juridicamente posto goza do direito de tributar os cidadãos desde que escorado na lei, legitimado, pois, na vontade popular, encontrando na Constituição os limites de sua atuação. De fato, como já advertia Machado, em estudo publicado nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1988, “a relação de tributação é uma relação jurídica e não uma relação simplesmente de poder”106. O poder tributário constitui-se em uma prerrogativa da soberania do Estado que, originariamente, atribui às Pessoas Jurídicas de Direito Público Interno – União, Estados, Distrito Federal e Municípios - a titularidade ativa das competências tributárias, previamente delimitadas pelo Poder Constituinte e expressas ou positivadas na Carta Magna. 105BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. Manual de Direito tributário. Florianópolis: Diploma Legal, 1990. p. 13. 106MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na constituição de 1998. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 11. 45 Em face das limitações impostas, chega a afirmar Carrazza, inclusive, que no território nacional não se pode falar em poder tributário mas tão-somente em competência tributária, sendo o ponto de divergência entre os termos exatamente o caráter absoluto do primeiro e a inerente subsunção às normas constitucionais do segundo. Nesse raciocínio, o poder tributário seria exclusivo da Assembléia Constituinte e se encerraria na Constituição, retornando, a seguir, ao povo, detentor da soberania, de forma a persistir unicamente a competência107. Conforme já adiantado no capítulo anterior, no Estado Constitucional, o poder do Estado está sujeito à Constituição, não podendo agir de forma desregrada, mas tão-somente na esfera traçada pelas limitações impostas pelos próprios cidadãos. Castilho afirma que “o limite de intensidade da exigência tributária é uma das maiores conquistas modernas no campo do Direito Tributário”108 e que apesar de inexistirem limites quantitativos de exigência, não se pode concluir que possa o ente tributante livremente onerar os contribuintes, já que os elementos normativos explícitos ou não na Constituição determinam que a tributação deva incidir com razoabilidade, aplicando-se, dentre outros, o princípio da capacidade contributiva e da vedação de confisco. Nesse sentido, somente por esses argumentos, já se pode concluir que os limites ao exercício da competência tributária são um poderoso instrumento de defesa dos cidadãos. A Constituição não cria o tributo, unicamente atribui competência a determinado ente federado109 (União, Estados, Distrito Federal e Município). De forma geral, competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões, ou ainda, o poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizarem as suas funções. O princípio que rege usualmente a repartição de competência 107CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 435. 108CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 25. 109Impende acrescentar a relação de defluência mantida entre o princípio federativo e o da autonomia municipal e distrital e a delimitação da competência tributária estampada na CRFB. Cf. CARRAZZA, op. cit., p. 433. 46 entre as entidades federativas é o da predominância de interesse, de acordo com o qual à União caberão aquelas matérias de predominante interesse geral ou nacional, aos Estados as de interesse regional e aos Municípios as de interesse local. Ao presente estudo interessa a competência tributária, ou melhor, a atribuição partilhada pela Constituição entre os entes federados de forma a autorizar a instituição e cobrança de tributos110, obrigatoriamente mediante lei111. Sobre o assunto, arremata Carrazza: A Constituição, ao discriminar as competências tributárias estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma-padrão de incidência (o arquétipo, a regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível (...).112 À aptidão arrogada às Pessoas Políticas para expedirem regras jurídicas que inaugurem o ordenamento positivo chama-se competência legislativa. Se a produção de normas jurídicas dirigir-se a tributos denomina-se competência tributária. Ataliba afirma que no exercício estrito da competência tributária, o legislador infraconstitucional: descreve certos acontecimentos econômicos, provocados ou não pela vontade do obrigado, e dispõe que, no momento de sua realização fática, nascerá, a cargo de alguém, rigorosamente previsto na lei, uma obrigação de direito público – e ‘obrigatio ex lege’, já se vê – de entregar dinheiro aos cofres públicos.”113 Carvalho completa o raciocínio, conceituando a competência tributária como “uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, 110Conforme o art. 3º do CTN, tributo é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei, e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. 111Entenda-se lei ordinária. Essa regra é excepcionada pelos tributos extraordinários (art. 148, CRFB) e os impostos de competência residual da União (art. 154, CRFB) que reclamam a edição de lei complementar. 112CARRAZZA, op. cit., p. 448. 113ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 106-107. 47 consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos”.114 Não é demais ressaltar que uma vez investidas desse poder de produzir normas tributárias, as Pessoas Políticas estão autorizadas, sempre mediante produção legislativa, além de criar o tributo, proceder a sua diminuição, majoração ou até supressão, tanto pela nãotributação como pela concessão de isenções. Frise-se, outrossim, que o atributo assinalado pela Constituição aos entes federados no que diz respeito à criação do tributo e definição da amplitude de incidência não autoriza o alargamento da competência. Os limites fixados pela Constituição não podem ser modificados pelo Código Tributário Nacional, leis ordinárias ou outras normas de escalão inferior, constituindo-se em matéria sob reserva de emenda constitucional. Para uma compreensão mais precisa do termo, faz-se necessária, ainda, a diferenciação entre competência tributária e capacidade tributária ativa. A indistinção das expressões tornase usual, visto que normalmente se encontram reunidos na mesma pessoa o poder legiferante na seara tributária (competência tributária) e a qualidade de credor da prestação a ser cumprida pelo contribuinte ou responsável (capacidade tributária ativa). O poder de editar as normas que virão a instituir o tributo, “desenhando o perfil jurídico de um gravame ou regulando os expedientes necessários à sua funcionalidade”115, não pode ser confundido com a possibilidade de integrar a relação jurídica tributária como sujeito ativo. Ademais, a competência tributária é intransferível, não sendo a capacidade dotada de tal característica. Transparece, aqui, a incidência do princípio da indelegabilidade, pelo qual, quedando-se inerte o detentor da competência, não pode a mesma ser transmitida. 114CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 214. 115Ibid., p. 215. 48 Em análise desvelada, Carrazza aponta seis características da competência tributária: privatividade, indelegabilidade, incaducabilidade, inalterabilidade, irrenunciabilidade e facultatividade do exercício. A Carta Magna ao delimitar a competência dos entes federados o fez de forma privativa ou exclusiva a cada um, o que significa afirmar que “1) habilitam a pessoa política contemplada (e somente ela) a criar, querendo, um dado tributo; e 2) proíbem as demais de virem a instituí-lo”116. É vedada, desse modo, a usurpação da competência tributária atribuída a uma determinada Pessoa Política, sob pena de serem declarados nulos todos os atos praticados neste bojo de incompetência, restando assegurados, porém, os direitos dos lesados pela inconstitucionalidade praticada. Do mesmo modo, a competência tributária não pode ser delegada (indelegabilidade), nem tampouco renunciada pelo titular (irrenunciabilidade), estando autorizado, entretanto, o titular a deixar de exercê-la (facultatividade). Pondera Carrazza sobre a indisponibilidade da competência tributária asseverando que a Pessoa Política “não é senhora do poder tributário (que é um dos atributos da soberania), mas titular da competência tributária, submetida, como demonstrado, às regras constitucionais”117. A incaducabilidade apresenta-se também como qualidade da competência tributária, traduzindo-se no fato de que a inação não afasta do ente federado a prerrogativa constitucionalmente assegurada. A justificativa para tal atributo decorre do entendimento de que a competência tributária, que é a competência para legislar sobre tributos, advém da competência legislativa latu sensu, a qual não está, por si só, sujeita à caducidade já que a 116CARRAZZA, op. cit., p. 453. 117Ibid., p. 587 49 Constituição assim não o determinou e, pelo próprio despautério da questão, não seria admissível a fixação de prazo para que o órgão legislativo elaborasse determinada norma118. Dentre as qualidades acima apresentadas, apenas três são consideradas por Carvalho: indelegabilidade, irrenunciabilidade e incaducabilidade, basicamente pelas mesmas razões. Já a privatividade e inalterabilidade, no seu entender, seriam insustentáveis, considerando a possibilidade de a União instituir os chamados impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária (art. 154, II, da CRFB) e a alterabilidade encontrar-se difundida no ordenamento jurídico pela hipótese de reforma constitucional, exercitável pelo Poder Constituinte Derivado119. Em relação à facultatividade, o autor tece considerações mais apuradas, por considerar uma questão de maior complexidade. De plano, inicia afirmando que a facultatividade é indubitavelmente regra geral. Contudo, como exceção, traz à baila o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação - ICMS120, o qual, por seu caráter eminentemente nacional, não permitiria que os Estados e o Distrito Federal (investidos da competência tributária) deixassem de legislar a respeito, uma vez que “seria efetivamente um desastre para a sistemática impositiva da exação que mais recursos carreia para o erário do País. O ICMS deixaria, paulativamente, de existir.”121 118Como exceção à regra da incaducabilidade a doutrina aponta as Emendas Constitucionais n. 3/93 e n. 12/96, as quais determinaram que a competência tributária para a instituição do imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira fosse exercitada até 31/12/94 e que a União criasse a contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos sobre movimentação financeira (CPMF), respectivamente, restringindo, pois, a cobrança ao prazo de dois anos, tendo sido tal prazo prorrogado por diversas leis posteriores, e, adiante, pela Emenda Constitucional n. 21/99. Cf. CARRAZZA, op. cit., p. 590. 119A CRFB, em seu art. 60, prevê a possibilidade de alteração de seu Texto via emendas constitucionais, estabelecendo um procedimento legislativo solene e dificultoso para sua edição, fixando, ainda, um rol de matérias impassíveis de serem alteradas ou abolidas (cláusulas pétreas). 120CRFB, art. 155, II. 121CARVALHO, op. cit., p. 220. 50 Aduz, ainda, como reforço a sua tese, que além da inafastabilidade de legislar sobre o referido tributo, as pessoas políticas titulares da competência têm o dever inevitável de atentar às leis complementares e às resoluções que o Senado expedir, submetendo-se ao regramento da União, por força do disposto na CRFB. As referidas caracterizações do ICMS, pelos argumentos colacionados pelo autor em destaque, teriam o dom de afastar a universalidade da proposição que faculta àqueles investidos na titularidade da competência tributária a opção de a exercerem ou não. Em que pese a força das razões sustentadas, na esteira do pensamento de Carrazza, entende-se que o fato da CRFB encampar a determinação de que cabe à lei complementar regular de que forma, necessariamente por deliberação dos Estados e do Distrito Federal, serão concedidos incentivos, benefícios ou isenções (art. 155, § 2º, XII), exigindo, assim, a participação do Executivo e do Legislativo na questão, não acarreta a possibilidade de obrigar o Legislativo a criar o referido tributo. O deslinde do caso seria simplesmente “que as demais pessoas políticas competentes para criar este imposto podem bater às portas do Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal, ex vi do art. 102, I, f, da CRFB) e, lá, postular o ressarcimento dos prejuízos (sofridos ou iminentes) causados por tal omissão.”122 Vencida essa análise inicial, denota-se que o exercício da competência tributária no ordenamento jurídico pátrio se encontra perfeitamente delineado pelos contornos positivos e negativos que lhe forneceu a Constituição ao distribuir as competências entre os entes federados, passando-se, adiante, ao estudo do Sistema Tributário Nacional, com ênfase aos princípios constitucionais limitadores do exercício da competência tributária. 122CARRAZZA, op. cit., p. 598. 51 2.2 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO 2.2.1 Imposto Único e Sistema Tributário A tributação é assunto de grande interesse na esfera política e econômica dos Estados. No Brasil fala-se, de tempos em tempos, na necessidade de uma reforma tributária. As críticas desferidas ao Sistema Tributário brasileiro iniciam-se pela sua ineficiência, notadamente pela quantidade de tributos que pode ser exigido por cada Ente Federativo.123 O número excessivo de tributos é pauta corrente de discussão e a busca por alternativas leva a formulação de várias teorias a respeito do tema. Em território nacional, a noção de um imposto único foi desenvolvida por Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ao propor um Imposto Único incidente sobre as transações de natureza financeira, as transações bancárias. Na concepção daquele autor o Imposto Único eliminaria todos os tributos existentes “mantendo-se apenas aqueles com características predominantemente extrafiscal”124. As vantagens do imposto único podem ser sintetizadas na simplicidade, tanto para o pagamento a ser realizado pelo contribuinte, quanto para a cobrança e fiscalização do Estado, uma vez que ele não precisaria equipar e manter um aparelho administrativo extremamente complexo para o fim de arrecadar apenas um imposto; na economia, que decorre da primeira, tornando-se muito lucrativo para o Estado; na comodidade, trazida ao contribuinte que não se encontraria emaranhado em muitos tributos e formalidades a atender e, finalmente, na maior 123CAMPOS, Dejalma de. Imposto único: uma utopia. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, ano 10, n. 47, p. 127–129, nov./dez. 2002. 124ALBUQUERQUE, Marcos Cintra Cavalcanti de. A marcha do imposto único. Cadernos de direito tributário e finanças públicas, São Paulo, v. 3, n. 9, p. 85-89, out./dez. 1994. 52 consciência fiscal do contribuinte, visto que ele poderia saber exatamente a quantia que estaria despendendo.125 As desvantagens são bem esquadrinhadas por Luiz Emygdio da Rosa, que aponta a excessiva onerosidade, tendo em vista as alíquotas geralmente elevadas neste tipo de tributação; tendência de transferência de bens para o exterior e dificuldade para que o imposto atinja todos os contribuintes.126 O projeto do imposto único apresentado por Marcos Cintra em 1990 (Imposto Único sobre Transações – IUT). Inegavelmente com base nele, três anos depois foi editada a Emenda Constitucional n. 3/93 que, mediante a Lei Complementar n. 77 de 13/07/93, instituiu o Imposto Provisório sobre Movimentação ou a transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza Financeira (IPMF), posteriormente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal por ferir os princípios da anterioridade e imunidade recíproca. Revestido em espécie de Contribuição, mediante a Emenda Constitucional 12/96 (Lei n. 9311 de 24/10/96, modificada pela Lei n. 9534 de 12/12/97) foi instituída a Contribuição Provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (CPMF), com prazo prorrogado pelas Emendas Constitucionais 21/99 e 37/02. A Emenda Constitucional n. 42/03 dilatou sua exigência até 31 de dezembro de 2007. Na prática, contudo, tanto como imposto quanto agora como contribuição, o gravame, ao invés de seguir as linhas traçadas pelo idealizador e substituir vários impostos, foi inserido dentre a gama de exações nacionais, sem qualquer caráter de unificação. 125BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 232. 126ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Novo Manual de direito financeiro & direito tributário. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. p.221-22. 53 Apesar de admitir a originalidade da concepção, Campos assinala que a idéia de um imposto único não se encaixa com a evolução das estruturas de arrecadação na maioria dos países127. Em verdade, especialmente pela dificuldade de se aferir a capacidade de pagamento do tributo pelo contribuinte, a doutrina de um modo geral critica a noção de imposto único, considerando mais eficiente e adequado um sistema tributário constituído que, por possuir um feixe de tributos diversos, pode ter alíquotas mais suaves ou mais pesadas tendo em conta o contribuinte alvo.128 2.2.2 Sistema Constitucional Tributário Brasileiro Antes de adentrar ao estudo específico do Sistema Constitucional Tributário brasileiro, é preciso relembrar os apontamentos incluídos no primeiro capítulo deste trabalho sobre a concepção sistêmica da Constituição, a qual, como já discorrido, traz consigo a idéia de unidade e totalidade. A Constituição, nesta perspectiva, traduz-se em um conjunto organizado de normas, escoradas em objetivos socialmente respaldados129. Como anteriormente mencionado, o Sistema Constitucional é formado por um conjunto de regras e princípios, realçando-se a importância fundamental destes últimos, os quais podem ser estudados tendo em consideração sua aplicabilidade irradiante sobre todo o ordenamento e também susceptíveis de exercerem influência específica no campo tributário. 127CAMPOS, op. cit., p. 127. 128Ibid. 129ATALIBA, op. cit., p. 3. O autor inclui nesta definição a fundamentação das referidas normas em “princípios coerentes e harmônicos”, contudo, pela força dos argumentos construídos na parte inicial desta dissertação, a norma jurídica é compreendida como gênero, do qual, regras e princípios são espécies. Configurada, pois, a força normativa e vinculação necessária dos princípios, desnecessária se torna a ressalva ou diferenciação. 54 Inserido no Sistema Constitucional brasileiro encontra-se o sub-sistema Tributário Constitucional, o qual, obrigatoriamente, com o todo deve estar concatenado, de forma a dele extrair seus fundamentos. Nessa perspectiva, o referido sub-sistema pode ser definido como “conjunto de normas organizadas harmonicamente no Texto Supremo, as quais versam matéria tributária e jazem reunidas ao derredor de princípios fundamentais”130. O estudo particularizado acerca do Sistema Tributário acarreta sua decomposição em partes a fim de bem apanhar seu conteúdo. Entretanto, tal dissecação não pode deixar à margem a concepção unitária trazida pelo contorno sistemático, uma vez que “os elementos integrantes de um sistema não lhe constituem o todo mediante sua soma, mas, desempenham funções coordenadas, uns em função dos outros e todos harmonicamente, em função do todo.”131 Essa relação harmônica entre as normas inseridas no sistema deve pautar pela disciplina das relações instauradas entre o Poder Público e os cidadãos, de maneira que para a conjunção perfeita entre o Sistema Constitucional latu sensu e o Sistema Tributário Constitucional, deve este último com aquele estar em sintonia, primando pelo seu conteúdo substancial e com os olhos voltados para o direito à liberdade e à propriedade. Com o afã de perscrutar os elementos definidores do Sistema Tributário brasileiro, Ataliba informa que este será mais ou menos flexível, dependendo da intensidade do cuidado constitucional com a matéria tributária, apontando, nessa visão, a existência de dois tipos: plástico/elástico ou rígido132. Nos primeiros, é larga a margem de liberdade deixada ao legislador ordinário, com o balizamento parco de algumas limitações. A plasticidade se refere à habilidade de facilmente 130JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Manual de direito financeiro e tributário. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2003 p. 149. 131 ATALIBA, op. cit., p. 7. 132Ibid., p. 13. 55 se adaptar a uma realidade em constante modificação, o que se torna possível em sistemas com formulações sintéticas e genéricas. A rigidez, por sua vez, característica marcante do Sistema brasileiro, não abre espaço para a criatividade da legislação infra-constitucional. Ao contrário, assinala o tratamento exaustivo da Constituição à matéria relativa à tributação. Jardim, a seu tempo, aponta duas características do Sistema Constitucional Tributário brasileiro: exaustividade e rigidez. Nessa concepção, a exaustividade corresponde ao fato da Constituição abranger quase que a totalidade dos comandos da ordem tributária e a rigidez se traduz na divisão rigorosa de competência estabelecida na Carta Magna, as quais são específicas, privativas e indelegáveis133. 2.2.2.1 Síntese evolutiva histórico-constitucional do Sistema Tributário Brasileiro A atual inflexibilidade ou rigidez do Sistema Tributário pátrio é fruto de um processo de constitucionalização quase que absoluto da matéria tributária. Deve ser entendida através da sua evolução histórico-constitucional e, em particular, do desenvolvimento das limitações constitucionais ao exercício da competência tributária, suas raízes e vicissitudes, até o momento presente, perpassando pelos diversos estágios de organização econômico-social que assinalaram o poder político no País. A história dos tributos no Brasil foi apreciada por Balthazar em artigo direcionado ao estudo das razões de irresignação do contribuinte às prestações tributárias. Assinala o autor que no período pré-colonial (1500-1530), o objetivo da coroa portuguesa consistia unicamente na exploração do pau-basil, devendo os interessados no produto contribuir com o quinto. O pagamento era feito em espécie e, como o próprio nome já denota, era calculado na razão de 133JARDIM, op. cit., p. 149. 56 um quinto da exploração levada a efeito. Este foi o primeiro imposto a ser cobrado no Brasil.134 Na época do Brasil colônia não se podia denominar o emaranhado de tributos exigidos pela coroa portuguesa de sistema tributário, pela inexistência de qualquer organização ou coerência, pressuposto inarredável para aquela configuração. A tributação para aferição de recursos “sem ordem e sem investigação de causa”135 apresenta simplesmente um regime de tributação. Com a proclamação da independência em 1822, instalou-se a monarquia, tendo sido outorgada a Constituição em 1824. A monarquia constitucional foi caracterizada por ser um regime político administrativo unitário, com divisão do território em províncias despidas de autonomia política, e concentração de poder, inclusive na divisão das receitas. Situação esta que foi moderadamente alterada pela lei n. 99/1835, a qual dotou as Províncias de fontes próprias de divisas, atribuindo-as uma certa autonomia. Percebe-se, pois, durante esse período, um protótipo de sistema, deveras flexível, sem delimitação firme quanto à competência tributária e discriminação de rendas, entretanto, com um grande valor em face dos avanços produzidos na questão relativa às garantias dirigidas aos contribuintes. Entre elas destacam-se: artigo 36 que concedia poderes privativos à Câmara de Deputados para a iniciativa de leis que tratassem de impostos, origem do princípio da anualidade (art. 171), introdução do princípio da estrita legalidade (art. 179, I), irretroatividade (art. 179, III), consagração do princípio da igualdade de todos perante a lei 134BALTHAZAR, Ubaldo César; ALVES, André Zampieri. A resistência ao pagamento de tributos no Brasil. In: BALTHAZAR, Ubaldo César (org.). Estudos de direito tributário. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 171-186. 135ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Novo manual de direito financeiro e direito tributário. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. p. 160. 57 (art. 179, XIII) e, especialmente, a previsão do princípio da capacidade contributiva no rol das garantias fundamentais do cidadão (art. 179, XV)136. A República, proclamada em 15 de novembro de 1889, trouxe consigo a organização das províncias do Brasil em Federação, formando os “Estados Unidos do Brasil”. O modelo tributário estabelecido pela Constituição de 1891 era flexível e plástico, podendo, nesse regime, na lição de Ataliba, “o legislador ordinário (...) agir tanto na esfera da União, como dos Estados – de forma muito livre, instituindo, à semelhança dos demais países, francamente, tantos e tão variados tributos quantos desejasse”137. No que se atém aos direitos e garantias do contribuinte, o modelo federativo incorporou uma série de conquistas trazidas pelo liberalismo emergente, tais como: inviolabilidade do direito à liberdade e à segurança no sentido de resguardar a propriedade, afirmação do princípio da legalidade, igualdade, ampla defesa, estrita legalidade tributária (art. 72, §30º) e uniformidade do imposto federal. Impende acrescentar, ainda, as inovações trazidas pela outorga de imunidade recíproca entre os entes federados quanto à tributação de bem, serviços e rendas públicas (art. 10) e a proibição de exigência de impostos de fronteira (art. 10, §1º), as quais foram determinantes para a obtenção do equilíbrio federativo. As principais críticas desferidas ao sistema proposto por essa Carta consistiam no fato dela permitir que tributos iguais fossem criados nas três esferas da Federação e vincular as exações municipais ao critério dos estados138. Seguindo essa linha evolutiva, a Constituição de 1934 reconheceu aos Municípios parcela de competência tributária, estabelecendo, assim, com mais rigor, a distribuição das rendas. Por esse Diploma Constitucional foram concedidas faixas específicas de tributação a 136ULISSES FILHO, José Viana. Evolução histórico-constitucional do sistema tributário nacional e das limitações ao poder de tributar. Revista da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco, Recife, v. 7/8, n. 16/17, p. 427-428, jul./dez 2002 e jan./jun. 2003. 137ATALIBA, op. cit., p. 57. 138YUNES JR, op. cit.,p. 180. 58 cada Pessoa Política, podendo ser considerado como marco fundamental para a rigidez presente até a atualidade. A Constituição de 1937 dá seguimento a sistemática rígida e exaustiva da antecessora, prevendo campos de exclusiva capacidade tributária à União, Estados e Municípios. A Carta de 1946 laborou ainda com mais densidade na definição da competência tributária, fixando uma nova dinâmica ao processo de divisão de rendas, fortalecendo mais ainda as municipalidades. De acordo com Morais, o Sistema Tributário apresentado por essa Constituição fundamentou-se em três premissas: coexistência de três sistemas tributários autônomos (um para cada unidade federativa), adoção de uma classificação jurídica dos impostos e autonomia financeira das entidades políticas da federação139. No que toca às limitações ao poder de tributar foram consagrados diversos princípios de cunho protecionista aos contribuintes e ao próprio sistema federativo, a exemplo: proibição da União de decretar tributos não uniformes no território nacional (art. 17), vedação aos Entes Federados estabelecerem limitações ao tráfego de qualquer natureza (salvo pedágio), imunidade recíproca, imunidade de impostos sobre templos, bens e serviços de partidos políticos, bem como sobre instituições de educação e assistência social. Atinente aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, cumpre destacar o disposto no art. 141, §34º, que além de consagrar o princípio da estrita legalidade tributária (nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça), assegurava em favor do contribuinte o princípio da anualidade da lei tributária, apregoando a obrigatoriedade da inclusão de tributo criado ou majorado nas leis orçamentárias anuais, de forma a evitar a surpresa da tributação. 139MORAIS, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 143. 59 O molde traçado pela Constituição de 1946 representou um passo importante no caminho em direção a rigidez quase total inaugurada com a reforma instituída pela Emenda n. 18, de 1º de dezembro de 1965, a qual merece mérito pela criação do mecanismo de distribuição de renda entre os Entes da Federação, sob a forma de quotas de participação. Em virtude dessa rigidez, grande expressão da doutrina afirma que no Brasil somente se conseguiu vislumbrar a existência de um Sistema Tributário na órbita constitucional a partir da referida emenda, uma vez que as Constituições anteriores colocavam os Municípios e os Estados em frontal inferioridade perante à União140. O contexto político em que estava inserida a nação brasileira com a tomada de poder pelos militares em 31 de março de 64, somado às propostas de desenvolvimento econômico e avanço tecnológico propalado pelos então governantes, foi preponderante para a reestruturação do Sistema Tributário, o qual, segundo tal concepção, deveria adquirir contornos mais racionais, de forma que os tributos viessem a ser classificados conforme a realidade econômica e não mediante critérios unicamente jurídicos141. Tal desiderato foi parcialmente cumprido, com a divisão dos impostos em incidentes sobre comércio exterior, patrimônio e a renda, produção e circulação e outros denominados especiais. A Emenda n. 18/65 manteve todos os princípios referentes às limitações ao poder de tributar estampados na Carta de 46, alterando, porém, o princípio da anualidade que passou a ser aplicável somente aos impostos incidentes sobre o patrimônio e a renda. Um fato curioso relacionado a essa emenda é que ela foi elaborada à Constituição de 1946, mas não restou integrada, permanecendo como peça separada, vindo posteriormente a ser incluída na Constituição de 1967. Esta última vigorou apenas dois anos e em pouco 140MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 235. 141ULISSES FILHO, op. cit., p. 444. No mesmo sentido, consultar: MARTINS, Ives Gandra da Silva. A evolução do sistema tributário no Brasil. Cadernos de direito tributário e finanças públicas, São Paulo, v. 8., p. 9-10, jul./set. 1994. 60 modificou o sistema, com exceção da outorga de competência à União para instituir impostos além dos previstos, ou seja, trouxe de volta a competência residual, podendo esta ser considerada uma brecha na rigidez antes hermética. Em 17 de outubro de 1969 foi proposta a Emenda Constitucional n. 1, a qual, pelas modificações substanciais que continha, foi considerada por muitos como uma nova Constituição. Estritamente na esfera do Sistema Tributário, as alterações promovidas compreendiam a permissão à União conceder isenções heterônomas, ou seja, possibilidade de isentar contribuintes do pagamento de impostos inseridos na competência dos Estados e Municípios, desde que cumpridos os pressupostos de relevante interesse social ou econômico nacional, a extirpação do princípio da anualidade com a positivação substitutiva do princípio da anterioridade e, finalmente, a proibição de vincular o produto da arrecadação de qualquer exação a determinado órgão, função ou despesa, salvo ressalvas previstas em lei. A referida emenda incrementou a competência da União com a inclusão de duas novas espécies tributárias: contribuições sociais e empréstimo compulsório. A proteção aos direitos e garantias individuais dos contribuintes se manteve intocada, permanecendo praticamente idêntica àquela estampada na emenda anterior. A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, ampliou as disposições referentes ao Sistema Tributário, com preocupação de resguardar a autonomia administrativa e financeira dos Estados e Municípios e corrigir as desigualdades regionais e uniformizar o sistema. Acabou por dar uma roupagem mais avançada à tributação, notadamente pelos contornos concedidos ao princípio da capacidade contributiva, à personalização do tributo e à seletividade, dentre outros. 61 No geral, foram mantidas as disposições que constavam da emenda anterior, até mesmo a competência residual da União, bem como o poder de instituir impostos extraordinários na iminência ou na hipótese de guerra externa142. A distribuição das competência e o partilhamento das receitas tiveram suas redações redesenhadas pela Emenda n. 3, de 17 de março de 1993, estando atualmente plasmadas nos artigos 145 a 162 da CRFB. Merece destaque, também, a extirpação da figura do decreto-lei, substituindo-o pela Medida Provisória, a qual será tratada com mais afinco na parte deste trabalho direcionada ao estudo do princípio da legalidade. Atesta Ulisses Filho que em matéria de limitações ao poder de tributar foi consolidado um verdadeiro estatuto do contribuinte143, tendo sido salvaguardados os princípios historicamente consagrados e previstos novos instrumentos de proteção aos contribuintes. Neste bojo, pode-se apontar a estrita legalidade tributária, vedação de tratamento desigual aos que estejam em situações análogas (isonomia tributária), princípios da irretroatividade e anterioridade da lei tributária, proibição de utilizar tributo com efeito de confisco e de limitar o tráfego de pessoas ou bens pela instituição de tributos interestaduais e intermunicipais, imunidades, além de outros. A proteção e o fortalecimento do sistema federativo não escaparam aos olhos do constituinte especialmente pela proscrição à União de instituir tributos que não sejam uniformes em todo território nacional ou que acarretem distinção ou preferência em relação a qualquer Ente Federativo, incidentes sobre a renda das obrigações da dívida pública dos Estados, Distrito Federal e Municípios, do mesmo modo a remuneração e os proventos de 142CRFB, art. 154, I e II 143ULISSES FILHO, op. cit., p. 454. 62 respectivos agentes, em níveis superiores aos estabelecidos ao que fixar para suas obrigações e seus agentes, proibição de concessão de isenção heterônoma144. Diante dessa moldura protetiva erigida pelo constituinte, pode-se reconhecer que, pela força impositiva que autoriza ao Estado tributar os cidadãos, o tributo é um dever. Entrementes, não se pode tangenciar o fato de “que de um lado está o Estado-Fisco, o possível credor, dispondo do poder de tributar, e é necessário que a Constituição não só disponha sobre as normas fundamentais mas sobretudo delimite esse poder.” 145 A importância dessas restrições leva Nogueira a coaduná-las com o papel primordial desempenhado pela Constituição nesta seara, afirmando que “Este título das limitações, agora inserto no capítulo constitucional do Sistema Tributário Nacional, bem sintetiza a função fundamental da Constituição no campo normativo da tributação.”146 Frente à pujança atribuível às limitações ao exercício da competência tributária na defesa dos contribuintes é que se abriga neste trabalho a corrente cristalizadora do entendimento de que o tributo é um dever do Estado e um direito da sociedade, de forma que os valores arrecadados com a tributação pertencem a nação e não ao ente federativo. Oriundas desse binômio dever/direito é possível equacionar duas relações jurídicas. A primeira, corresponde àquela em que o Estado é credor de uma obrigação a ser cumprida pelo contribuinte que apresente capacidade contributiva (pagamento do tributo) e a segunda, pela qual o cidadão é o sujeito ativo, credor do Estado, que se torna então devedor do tributo. Por esse motivo está sujeito à responsabilização aquele que faz mal uso do dinheiro público147. 144Conforme disposto no art. 151 da CRFB. 145NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, p. 129. 146Ibid. 147Cf., NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. O tributo é um direito da sociedade e não do Estado. Disponível em: <http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5636>. Acesso em: 31 ago. 2004. e TROIANELLI, Gabriel. Responsabilidade do estado por dano tributário. São Paulo: Dialética, 2004. 63 Pela evolução sinteticamente demonstrada percebe-se que o sistema rígido, circunscritor de cada competência tributária disciplinado pela Constituição de 1988, repousa em longa tradição. Do mesmo modo, a proteção constitucional oferecida aos contribuintes vem ganhando normatividade e, consequentemente, efetividade, no correr dos tempos, com a positivação e instrumentalização das limitações constitucionais ao exercício da competência tributária, sobre as quais passa-se a seguir ao debruço. 2.3 IMUNIDADES Ao lado dos princípios de limitação ao exercício da competência tributária, aparecem as imunidades. Elas se constituem basicamente na positivação de determinadas situações que a Constituição definiu para ficarem livres de tributação, notadamente por estarem relacionadas com concretização de certos fins públicos. 2.3.1 Considerações gerais A partir de um enfoque que analisa as normas ora em posição estática ora sob o viés da incidência, Coelho apresenta a estrutura das espécies normativas pela decomposição em hipótese e conseqüência. Essa divisão é de suma importância na construção de sua teoria da exoneração tributária “baseada no endereço normativo das leis sobre tributação”148. Por essa teoria, as modificações produzidas pelas leis tributárias nas hipóteses das normas de tributação seriam qualitativas, no sentido de qualificarem ou desqualificarem juridicamente os fatos como hábeis ou não a gerar tributação, e as alterações incidentes nas conseqüências seriam quantitativas, afetando justamente o valor da obrigação de pagar o tributo. No primeiro caso, não existe a obrigação pela não incidência da norma tributária ao 148COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. 2. ed. ver. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 142. 64 fato observado. No segundo, ela subsiste, mas somente as condições de seu cumprimento é que são transformadas. O autor distingue as exonerações em internas e externas no que se refere à estrutura da norma. As internas subdividem-se em exoneração nas hipóteses (imunidades e isenções) e exoneração nas conseqüências (reduções diretas de base de cálculo e alíquotas, deduções tributárias e despesas presumidas e concessão de créditos presumidos), as externas, por sua vez, seriam as remissões e a devolução de tributos pagos ilegitimamente. A doutrina simplifica as modalidades de exoneração de tributos restringindo-as a três formas: imunidade, isenção e não incidência, as quais, indistintamente, levam ao não pagamento do tributo. Por esta razão, em primeiro lugar, cabe aqui a diferenciação das expressões. Genericamente, incidência é a ocorrência do fato gerador concretamente. A nãoincidência pode ser simples ou juridicamente qualificada, simples quando não ocorre o fato gerador e juridicamente qualificada são as imunidades, ou seja, a previsão constitucional limitativa da competência tributária. A isenção, por sua vez, traduz-se na inexigibilidade de obrigação tributária em razão de lei. Na isenção, há incidência, porém, sobrepõe-se a dispensa legal do pagamento.149 Os tributaristas divergem quanto à colocação das imunidades no campo da incidência. Não se pretende aqui esgotar o tema, mas somente trazer a lume as correntes dissonantes. Coelho sustenta que “O dispositivo constitucional que põe a imunidade atua na hipótese de incidência, excluindo de certos fatos ou aspectos destes a virtude jurígena”150. Corrêa, em estudo interessante publicado em 1975, apresentou os fenômenos da incidência, não incidência e isenção mediante a confrontação dos termos com a teoria geral dos negócios 149FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 150COELHO, Sacha, op. cit., p. 148. 65 jurídicos, identificando os requisitos de sua existência com a incidência do fato gerador. Nesse caminho, a não incidência consistiria o “alheamento do direito tributário a fatos e acontecimentos situados num campo extrajurídico”151 e, assim, combatia o entendimento da imunidade como uma forma qualificada de não incidência, uma vez que os fatos imunes são necessariamente juridicamente regulados, só que de forma expressa a não produzir resultados. Com esses pressupostos, o autor conecta a imunidade com a incidência tributária no sentido de que “tudo que no mundo dos fatos, atos, acontecimentos e situações tenha sido objeto de normatividade jurídica para criação e exigência de tributo, constitui incidência tributária”152. Carrazza e Carvalho, por outro lado, atestam a impossibilidade de configurar a imunidade na esfera da incidência ou da não-incidência (seja qualificada ou não), já que aquela operaria efeito em momento anterior, atuando na delimitação da competência tributária (seara constitucional) e não na atividade legislativa de instituição das exações, campo estrito da incidência153. Seria, nesse rumo, “incompreensível analisar a norma jurídica que cria o tributo, e, portanto, define a incidência, sem antes observar, atentamente, os canais que a Constituição elegeu para esse fim”154. O mesmo argumento é utilizado pelos que afastam as imunidades das isenções. Mesmo acatando a presença de elementos de convergência entre os termos, tais como a “circunstância de serem normas jurídicas válidas no sistema; integrarem a classe das regras de estrutura, e tratarem de matéria tributária”155, as semelhanças terminariam por aí, 151CORRÊA, Walter Barbosa. Incidência, não incidência e isenção. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 14. 152Ibid., p. 15. Acerca desse ponto, Walter Barbosa Corrêa adverte, ainda, sobre a importância de não confundir a concepção demonstrada de incidência com a conotação econômica que a expressão pode adquirir, que, por esse sentido, pode ser traduzido no encargo financeiro decorrente de obrigação compulsória. 153Cf. CARRAZZA, op. cit., p. 640 154CARVALHO, op. cit. 155Ibid., p. 184. No mesmo sentido, colaciona Sacha Calmon Navarro Coelho que a imunidade e a isenção “são fatores legislativos que condicionam as normas tributárias, cooperando na formação das mesmas.” In COELHO, Sacha, op. cit.,. p. 148. 66 considerando o escalão superior de localização das imunidades, bem como sua função colaborativa na fixação das competência tributárias. A imunidade representa o desejo constitucional de que determinadas situações não sejam oneradas pela tributação, excluindo, pois, certas pessoas, bens e serviços do campo de abrangência do poder de tributar do Estado. Afirma Sacha Calmon Navarro Coelho que “Teleologicamente a imunidade liga-se a valores caros que se pretende sejam duradouros, enquanto a isenção veicula interesses mais comuns, por si só mutáveis”156. A competência tributária é exercida pelas Pessoas Políticas no sentido de criar os tributos, com a definição mediante produção legislativa específica dos elementos caracterizadores da exação (hipótese de incidência, sujeito ativo e passivo, base de cálculo e alíquota). Entretanto, além da atuação positiva, a delimitação do campo tributário é fixada negativamente pelas imunidades tributárias. Tais normas, em outras palavras, determinam a incompetência das entidades federadas para tributar157. Neste viés, Hugo de Brito Machado158 leciona que imunidade é limitação à competência tributária, e o que é imune não é tributável159. No que toca à abrangência, a imunidade é ampla e indivisível, não sendo permitida qualquer restrição não prevista constitucionalmente. Entrementes, a questão da abrangência 156COELHO, Sacha, op. cit., p. 148. 157O entendimento da imunidade como incompetência ou não-competência é partilhado por Roque Antônio Carrazza e Mizabel Derzi. 158COELHO, Sacha, op. cit. p. 278. 159Tecendo severas críticas às proposições mais recorrentes da doutrina sobre o assunto, Paulo de Barros Carvalho combate a idéia que as imunidades atuariam como limitações constitucionais à competência tributária, utilizando para tanto uma premissa cronológica. Em outras palavras, não seria possível conceber a existência de momento anterior em que as competências seriam amplamente outorgadas e um posterior em que se viria a limitá-las. Cf.: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 170. 67 não é tão simples como parece, os entendimentos se dividem quanto às imunidades serem dirigidas somente aos tributos não vinculados160. Compondo a fileira dos que defendem a restrição das imunidades aos impostos, destaca-se a doutrina de Silva: As imunidades configuram privilégios de natureza constitucional e não podem estender-se além das hipóteses expressamente previstas na Constituição, que, em seu art. 150, VI, (...). Note-se que só existe imunidade quanto aos impostos. Ela não beneficia as taxas, nem a contribuição de melhoria nem as demais contribuições fiscais ou parafiscais.161 No mesmo diapasão, Martins restringe as imunidades aos impostos porquanto as demais espécies tributárias são atreladas a determinadas atividades: as taxas apresentam uma faceta contraprestacional de serviços públicos e divisíveis ou outra de exercício do poder de polícia; a contribuição de melhoria é apenas devida havendo valorização do imóvel do contribuinte; as contribuições especiais, do mesmo modo, vinculam-se a sua finalidade (as sociais destinadas à seguridade social, as de intervenção no domínio econômico para regulá-lo e as de interesse das categorias sociais para mantê-la). O empréstimo compulsório, por sua vez, apenas se justifica nos casos de calamidade pública, guerra externa ou investimento público relevante162. À semelhança, posicionam-se Eduardo Sabbag e Sacha Calmon Navarro Coelho. 160Conforme classificação elaborada por Geraldo Ataliba, os tributos dividem-se em vinculados e não vinculados. Os primeiros têm como hipótese de incidência (fato gerador na nomenclatura do CTN) uma atividade estatal ou uma conseqüência dessa atividade dirigida ao contribuinte e os segundos quando o fato gerador estiver relacionado com uma atividade praticada pelo particular. Adota o autor a classificação tripartipe dos tributos de forma que os vinculados seriam as taxas e as contribuições de melhoria e os vinculados os impostos. Cf. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 4. ed. ampl. e atual. em função da Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. 161SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 686. 162MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 172. v. 6, tomo I. 68 Em frontal oposição, perfilham Hugo de Brito Machado163, Roque Carrazza164 e Paulo de Barros Carvalho165 sustentando que para que as imunidades cumpram suas finalidades de forma ótima devem abranger todas as espécies tributárias. O segundo autor, inclusive, o faz revendo sua opinião expressada nas edições anteriores a de 2003, arrazoando seu posicionamento na constatação de existência no Texto Maior de casos de imunidades concedidas a taxas166. Carvalho consolida a argumentação ampliativa declarando que “a Constituição brasileira abriga regras de competência da natureza daquelas que se conhecem pelo nome de imunidades tributárias, e que trazem alusão explícita às taxas e à contribuição de melhoria, o que basta para exibir a falsidade da proposição descritiva.” 167 A corrente adepta da maior abrangência, aduz que a grande maioria das imunidades previstas na Constituição defluem dos princípios nela estampados, como a: igualdade, isonomia, capacidade contributiva, proteção à educação, de forma que, especialmente por esta razão, não podem ter sua abrangência restringida por meio de emendas, nem, pela coerência, pela atuação do legislador infra-constitucional. Num cotejo entre os direitos humanos e a tributação, Torres parte da premissa de que a imunidade tributária deve ser encarada como limitação do poder do Estado pelas liberdades pré-existentes. Nesta concepção, seu fundamento é a liberdade individual entendida em sua 163MARTINS, op. cit., p. 221. 164CARRAZZA, op cit., p. 642. 165CARVALHO, op. cit., p. 175. 166Como por exemplo: o art. 5º, XXXIV, “a” e “b” (direito de petição e obtenção de certidões), art. 5º, LXXIII (isenção de custas judiciais ao autor de ação popular, salvo comprovada má-fé), art.5º, LXXIV (assistência judiciária gratuita), art. 5º, LXXVI, “a” e “b” (gratuidade do registro civil e certidão de óbito ao reconhecidamente pobres), art. 5º, LXXVII (gratuidade das ações de habeas corpus e habeas data), art. 203 (prestação gratuita de assistência social independente de contribuição), art. 208, I (prestação gratuita de educação pelo Estado), art. 226, §1º (gratuidade da celebração do casamento), art. 230, §2º (transporte gratuito aos maiores de sessenta e cinco anos). A visualização da figura da imunidade nestes comandos não é pacífica na doutrina, uma vez que, como premissa inafastável, faz-se necessário o reconhecimento da natureza tributária (taxa) dos valores cobrados pelos serviços por esses artigos dispensados. 167CARVALHO, op. cit., p.178. 69 dimensão absoluta, seria, pois, “por meio das imunidades que as liberdades se afirmam como direitos absolutos diante do poder tributário.” 168 Entendendo que as imunidades encontram-se fincadas nos direitos fundamentais préconstitucionais, o autor afirma que elas não seriam provenientes de uma fonte formal e exclusiva, ao contrário, muitas somente apareceriam na legislação ordinária, sem que com isso perdessem seu fundamento constitucional. Com esse substrato, Ricardo Lobo Torres classifica as imunidades sob três enfoques diferentes. Pela forma constitucional, seriam explícitas ou implícitas, as quais somente viriam à tona nos tratados internacionais e nas leis ordinárias, através da isenção por exemplo. Pela perspectiva do objeto, abarcariam todos os tributos, desde que relacionados com os direitos fundamentais, ou somente aos impostos (art. 150, CRFB). Finalmente, no que se refere à abrangência, seriam subjetivas/pessoais, vedando a incidência tributária sobre determinadas pessoas ou objetivas/reais, proibição de tributação sobre especificados bens ou mercadorias169. Pela classificação demonstrada, pode-se concluir que para o autor as imunidades seriam as não incidências tributárias vinculadas aos direitos humanos, indistintamente de receberem esta denominação ou forem apelidadas de isenção. Ademais, apesar de escorar suas opiniões em razões diversas, Ricardo Lobo Torres se aproxima em muito dos autores por ele denominados positivistas, os quais não estabelecem ligação da matéria tributária com os direitos humanos, notadamente pela aceitação de existência da figura da imunidade fora da Constituição. Apenas para evitar contradição neste trabalho, é preciso se ter em conta que a partir do momento que se reconhece a existência de isenções previstas constitucionalmente há uma 168TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 50. 169Ibid., p. 71. 70 quebra da idéia de posicionamento em escala superior das imunidades. Por outro vértice, entendendo que as disposições constitucionais referidas em nota, apresentadas na Constituição como hipóteses de isenção, na verdade tratar-se-iam de imunidades em face da localização, a concepção permanece, sendo necessário, porém, admitir um problema de nomenclatura no Texto Maior. Como se pôde observar, não existe tranqüilidade doutrinária na seara das imunidades tributárias. Cada autor assinala conceito e defende uma classificação e abrangência das espécies. Inarredával, porém, concluir que essas normas, ou sobrenormas, inserem-se no plano das regras jurídicas de competência, conforme classificação estabelecida por Canotilho170, já demonstrada no primeiro capítulo, atuantes no campo da delimitação do campo tributário de maneira negativa, no sentido de definir ainda mais o contorno da competência tributária outorgada aos entes federados. Retomando o raciocínio de que o poder de tributar do Estado, decorrente da soberania, se encerra na Constituição, partindo daí somente a competência tributária, é que se afirma que toda e qualquer norma presente na Carta Magna, que venha a auxiliar no desenho das competências, trata-se de limitação ao exercício da competência tributária, no sentido de que as entidades dotadas de tal aptidão ao exercerem a função legislativa de instituir o tributo têm sua conduta já previamente moldada. 2.3.2 As imunidades previstas no art. 150, VI, da CRFB Roborando a idéia de que grande parte das imunidades plasmadas na Constituição tem seu alicerce fincado em alguns princípios de mesmo escalão (garantia e proteção à federação, 170CANOTILHO. J. J. G. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 1998. 71 igualdade, isonomia, capacidade contributiva, proteção à educação, à liberdade religiosa e de manifestação de pensamento), pode-se afirmar que elas se qualificam como forma de garantir o alcance de certos fins públicos171. Do princípio Federativo e da Isonomia decorre diretamente a denominada imunidade recíproca prevista na alínea “a” do art. 150, VI, da CRFB, pela qual os entes federados não poderão cobrar impostos uns dos outros. A defluência do postulado em destaque do princípio federativo advém da conclusão de que se uma Pessoa Política pudesse tributar outra, acabaria por interferir em sua autonomia, a qual, como se pode denotar da simples leitura do art. 18 da Constituição, constitui-se num dos fundamentos da Federação Em outras palavras, a tributação entre os entes federativos acarretaria invariavelmente na relativização da autonomia do ente onerado, a ponto de dificultar ou até obstar a realização dos seus objetivos institucionais, bem como na quebra da igualdade jurídica, visto que a imposição tributária traz consigo a idéia de sujeição do tributado ao tributante e, em contraponto, de supremacia deste sobre aquele172. Destarte, prevalece na ordem constitucional brasileira a isonomia entre as Pessoas Políticas, corolária do regime federativo brasileiro, e não se cogita sobre distribuição hierárquica entre essas Pessoas, somente de competências ou incompetências específicas outorgadas pela Constituição. 171Em que pese a origem de algumas imunidades puder ser atribuída a um princípio ou liberdades pré-existentes, é preciso que se tenha em conta se tratarem de institutos jurídicos distintos, sendo que as primeiras informam o que não é passível de tributação. Atuam ambos, entretanto, mesmo que de forma diferenciada, como limitações constitucionais ao exercício da competência tributária. Sobre o assunto consultar: COELHO, Sacha Calmon Navarro. O controle da constitucionalidade das leis e o poder de tributar na constituição de 1988. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.p. 357-58. 172CARRAZZA, op. cit., p. 645-646. 72 Com escoro nesses princípios é que Carrazza alarga a interpretação da imunidade recíproca de forma a alcançar todos os impostos e não apenas os incidentes sobre “patrimônio, renda ou serviços uns dos outros” 173. Independente dessa discussão sobre a abrangência do dispositivo, o §3º do art. 150 da CRFB estabelece que a imunidade recíproca somente beneficia as Pessoas Políticas no desempenho de atividades públicas, bem como no exercício de atividade econômica, desde que não remunerada por preço ou tarifa. A interpretação literal do dispositivo mencionado é corrente na doutrina, conforme se pode atestar dos estudos de Carrazza174. Entretanto, em homenagem ao debate, traz-se a conjugação estabelecida por Humberto Ávila, em obra recentemente publicada, pela qual atesta a indispensabilidade de se perquirir se a contraprestação recebida é adequada. Aprofundando sua opinião, explica o mestre que somente nos casos em que se trate efetivamente de atividade econômica praticada em livre concorrência é que estaria autorizado o afastamento da imunidade recíproca, já que: A entidade pública deve possuir a liberdade, total ou parcial, para determinar o valor da contraprestação. Quando os montantes a serem pagos não são livremente fixados, mas regulados por lei ou pelo Poder Executivo, não existe uma contraprestação adequada. Isso porque uma empresa privada deve poder delimitar o conteúdo dos seus contratos, de modo que a reciprocidade, a equivalência e o equilíbrio possam ser garantidos. Quando são exigidas taxas (não preços) para prestação dos serviços públicos, não estão presentes os elementos necessários à configuração de uma atividade econômica.175 Por se afastar do objeto imediato dessa pesquisa, não se esmiuçará os entendimentos confrontantes, sendo, porém, indiscutivelmente, de grande valia o debruço futuro sobre ponto tão interessante. 173CARRAZZA, op. cit., p. 647-648. 174Ibid., p. 649. 175ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com a emenda constitucional n. 42 de 19.12.13 . São Paulo: Saraiva, 2004. p. 219-220. 73 Com inegável escopo de preservar a liberdade religiosa no País176, é vedada a tributação por meio de impostos os templos de qualquer culto (alínea “b” do inciso VI do art. 150 da CRFB). O parágrafo 4º concedeu maior abrangência à inicial interpretação do dispositivo, esclarecendo a imunidade se refere ao patrimônio, renda e serviços177. Visando proteger a liberdade política e os sindicatos, para difundir a educação e cultura e estimular os trabalhos de assistência social ou benemerência é que foi prevista na alínea “c” daquele artigo 150 a imunidade de tributação sobre o patrimônio ou renda destas instituições. O espírito que moveu o legislador constitucional a imunizar estas associações de pessoas está ligado especialmente ao fato de que os partidos políticos são de grande relevância para garantir o sistema representativo, com vistas a promover a democracia; a luta e os direitos dos trabalhadores, notadamente os mais humildes, em muito se fortalece com a formação dos sindicatos; o crescimento e desenvolvimento de uma Nação está diretamente relacionada ao acesso a educação ampla e eficiente, inclusive no que toca ao exercício da cidadania; e, finalmente, porque os serviços de assistência social comungam com o Estado para a realização do bem comum. Destaque-se, outrossim, que para fazerem jus à benesse, as entidades devem, necessariamente, não possuir fins lucrativos, aplicar seus recursos exclusivamente no Brasil e escriturar suas receitas em livros próprios e de modo adequado, conforme estampado no art. 14, do Código Tributário Nacional. Na alínea seguinte (“c”) , encontra-se a imunidade de livros, periódicos, jornais e o papel destinado a sua impressão, com a qual o constituinte visou garantir a liberdade de 176Dentre os direitos e garantias fundamentais, a CRFB, previu em seu art. 5º, VI, a liberdade de consciência e de crença. 177Do Supremo Tribunal Federal destaca-se: Recurso Extraordinário n. 325822 / S, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgado em 18/12/02, publicado no DJU em 14/05/04; 74 comunicação e de pensamento, de forma a facilitar o acesso à cultura e promover a educação. Realçando os objetivos dessa norma imunizante, acrescenta Carrazza: (...) A própria democracia de um País é diretamente proporcional ao grau de livre manifestação do pensamento que nele existe. É ponto bem averiguado, que um regime em que não seja possível às pessoas manifestar livremente o próprio pensamento não pode ser havido por democrático.178 Questão amplamente discutida na doutrina e na jurisprudência se refere à acepção da palavra livros para fins de tributação. Entende Carrazza, na autorizada companhia de Borges e Machado, assevera que a expressão deve ser interpretada como veículo de idéias, de pensamento, meio de difusão da cultura, independente do processo tecnológico que é utilizado para sua realização. Considera, então, o primeiro autor, como “sucedâneos dos livros, para fins de imunidade, todos os objetos da espécie, que contêm os textos dos livros, em sua forma corriqueira”179. Reforça sua opinião, afirmando que é o fim a que se dirige o livro que o imuniza (difusão de pensamento), podendo, assim, a eles ser equiparados os que os substituem ou lhe fazem as vezes, tais como: livros eletrônicos, CD-Room, disquetes, dentre outros. Idêntica interpretação finalística é emprestada à formulação “papel destinado a sua impressão” de modo a alargar a não tributação a outros processos tecnológicos e outros insumos, como tinta, tipos gráficos, máquinas impressoras, desde que voltados ao escopo de transmissão de pensamento. O tema não é pacífico, todavia vislumbra-se que a leitura corrente do dispositivo atualmente se perfaz com uma visão muito restritiva, quase que literal do Texto, contra qual, com propriedade, manifesta-se Carrazza. Assinala que tal procedimento pode levar num futuro próximo, quando se fizer patente a escassez de livros, jornais e periódicos produzidos 178CARRAZZA, op. cit., p. 690. 179Ibid., p. 696. 75 na maneira tradicional, ao esvaziamento da razão de ser da norma, convertendo-a em letra morta no corpo da Constituição180. 2.4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS LIGADOS À COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA Juntamente com as imunidades tributárias, os princípios constitucionais limitadores do exercício da competência de instituir tributos compõem a estrutura erigida pelo legislador constitucional no sentido de definir o alcance das exações. Dentre a gama de princípios que despontam, o estudo deve, necessariamente, iniciar-se pelo princípio da legalidade. 2.4.1 Princípio da Legalidade O princípio da legalidade, na forma como atualmente é visualizado, passou por uma evolução especialmente qualitativa, a qual será brevemente demonstrada no item que segue. 2.4.1.1 A Passagem do Estado de Direito para o Estado Constitucional e a redefinição do Princípio da Legalidade O Estado de Direito nos moldes como se conhece é fruto da evolução do Estado Absolutista do séc. XVII e do Estado de Polícia do séc. XVIII. Sua característica essencial é a tentativa de eliminar a arbitrariedade estatal, determinado uma linha de separação entre o ente Estatal e os cidadãos. O ponto culminante dessa reviravolta foi a Revolução Francesa, não se podendo deixar de considerar, entretanto, influência da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra quase um século antes. No Estado de Direito a generalidade da lei se constitui em sua essência, visto que o fim primordial era garantir a imparcialidade do Estado no trato com os cidadãos – a lei deve atingir a coletividade de forma igualitária. Ao lado da necessária generalidade posta-se o seu caráter abstrato. A norma então, amparada na generalidade e abstração, seria a forma mais 180CARRAZZA, op. cit., p. 706. 76 propícia para manter a unificação da sociedade, sendo que, em tese, pacificaria os conflitos, proporcionando a justiça181. O reconhecimento da supremacia da lei traz em seu bojo o princípio da prevalência desta espécie normativa, o qual comporta uma dimensão positiva e uma dimensão negativa. A dimensão positiva denota-se pela exigência de observância ou de aplicação da lei; a dimensão negativa se refere a proibição de desrespeito ou de violação à lei. O passar dos tempos denotou que a norma sofre em sua elaboração a pressão de vários grupos sociais, em virtude da forma social plural da sociedade moderna, os quais desempenham um papel fundamental na redução da generalidade e abstração da norma, ou seja, a lei é utilizada como instrumento de realização dos interesses sociais, políticos e até jurídicos de determinadas parcelas da sociedade. A conseqüência óbvia de tal processo é que a lei não mais pode ser considerada como a maneira mais confiável de atender os objetivos da sociedade como um todo, tendo em vista seu caráter setorial. A crise do Estado de Direito em sua concepção legalista levou à crise do princípio da legalidade, uma vez que tal princípio conjugado a supremacia da lei não fazem mais frente ao conceito pluralista182 hoje enfrentado, onde diversos atores sociais interferem no processo. No entender de Zagrebelsky, a lei, que na acepção liberal, era a garantia da estabilidade, converte-se em instrumento de instabilidade183, uma vez que o acesso ao Estado destas forças distintas que reclamam por proteção legal a seus interesses desequilibra a atuação do estado nas relações privadas, ou seja, de mero agente ordenador, o Estado passou a 181A prevalência da legalidade sobre o governo de homens é bem delineada por Norberto Bobbio no livro: O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz e Terra Política, 1986. 182O estudo de tal inferência plural nas esferas de produção legislativa deve, necessariamente, abordar dois planos de análise, interferência externa e interna, tendo como prisma o Estado Nacional. A intervenção direta desses atores com o fito de tentar determinar o conteúdo das normas jurídicas produzidas ocasionou fenômeno denominado por vários autores como “inflação legislativa”, culminado com a eclosão de um sem número de leis para regrar diferentes situações concretas aparentes, as quais, pela pulverização da produção e atores envolvidos, deixa de lado a generalidade e abstração, bases da lei na concepção liberal. 183ZAGREBELSKY, op. cit., p. 38. 77 interventor, regulando o que inicialmente era para ser determinado livremente pelas regras de mercado ou da necessidade. No Estado Constitucional, no qual a unidade do ordenamento repousa num conjunto de valores e princípios que possuem um consenso social suficientemente amplo, percebe-se claramente a passagem da supremacia da lei, como forma mais eficaz de pacificação, para a supremacia da Constituição184, como bem explicitado no primeiro capítulo, a qual normatiza os comportamentos e determina os titulares, as formas de exercício do poder e especialmente os conteúdos a serem observados. 2.4.1.2 Princípio da legalidade tributária O princípio da legalidade visto da forma mais abrangente possível encontra-se plasmado no art. 5º, II, da CRFB185. A pujança de tal primado não tem o condão de retirar a força dos demais diplomas legais, inclusive dos atos administrativos, mas afirma a idéia que somente a lei pode alterar a ordem jurídica inauguralmente. No campo específico do direito tributário, os princípios jurídicos atuam como limitações ao exercício da competência tributária, constituindo-se a legalidade no fundamento impeditivo para que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exijam tributos que não estejam previstos na lei. Ainda nesta seara, a legalidade costuma ser qualificada pela expressão “estrita” em virtude da conjugação do postulado amplo (art. 5º, II) com o disposto no art. 150, I, da CRFB. A legalidade estrita para Eduardo Jardim significa: que é predicado da função legislativa dispor sobre tributos, devendo fazê-lo de modo exaustivo, prevendo detidamente todos os componentes da norma jurídica, desde o plano do nascimento da obrigação até sua extinção, perpassando pelo estádio da 184O império da lei como regra geral, a separação dos poderes e o respeito pela liberdade e pela propriedade tornaram-se as características fundamentais do Estado de Direito durante sua evolução. Contudo, a implantação crescente da democratização agregou outra característica: a lei deve ser não só uma regra geral mas também a expressão da vontade da comunidade, formulada por representantes livremente eleitos 185CRFB, art. 5º (...) II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. 78 existência, sem contar todos os desdobres direta ou indiretamente atrelados ao assunto, a exemplo dos mecanismos revisores da própria legalidade.186 Amaro destaca que “a legalidade tributária não se conforma com a mera autorização de lei para cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador; necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita na lei.”187 Quando se fala em reserva de lei188 para tratar de matéria tributária, refere-se à lei em sentido material e formal, de modo que a legalidade tributária não se conforma simplesmente com um comando geral, abstrato e impessoal – lei material, a segurança jurídica requer lei formal, ou seja, proveniente de órgão titular de função legislativa189. A necessidade do consentimento popular, pela via de representação, é um aspecto que merece destaque quanto à exigência de lei na esfera tributária, considerando seu conteúdo axiológico, tendo em vista a necessidade de votação por Assembléias Legislativas para a instituição de tributos.190 Ademais, o princípio da legalidade é influenciado pelos conceitos de justiça e segurança jurídica, valores que poderiam ser afastados se o administrador fosse livre para escolher quanto e de quem cobrar191. Justamente sobre essa faceta da aplicabilidade do princípio, Torres afirma que “a imposição tributária fora dos quadros da legalidade transforma-se em opressão da liberdade, escravidão ou roubo”192. 186JARDIM, op. cit., p. 166. 187AMARO, op. cit., p. 112. 188Faz-se importante considerar o disposto no art. 150, § 6º da CRFB (redação dada pela EC n. 3/93) que exige lei específica (lei especialmente editada para tratar do tema) para a definição de qualquer subsídio ou isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas, contribuições (com ressalva do previsto no art. 155, § 2º, XII, “g”, que trata dos convênios do ICMS). O objetivo do disposto nesse artigo é afastar a possibilidade de que certas isenções ou figuras análogas sejam aprovadas juntamente com leis que tratem de assuntos diversos, sem ser dispensada a necessária atenção. 189AMARO, op. cit., p. 116. 190Pode-se falar aqui em legitimação. 191AMARO, op. cit., p. 111. 192TORRES, op. cit., p. 5. 79 Assim, salvo parcas exceções193, prevalece a regra pela qual somente a lei pode dispor sobre norma jurídica tributária, seja a instituidora do tributo, seja qualquer outra. 2.4.1.3 A Legalidade e as Medidas Provisórias (EC n. 32/01) A CRFB em seu artigo 62 trouxe a figura da medida provisória em substituição ao decreto-lei, previsto na anterior, o qual era editado pelo Executivo em face de urgência ou relevante interesse público e cabível apenas para algumas hipóteses taxativamente previstas. A medida provisória, por seu turno, não tem um rol tão específico como o decreto-lei, podendo assim, atuar em diversas áreas. A EC n. 32/01 alterou o art. 246 inserido pela EC n. 6/95, no sentido de permitir que esta espécie normativa seja empregada para regulamentação de artigo cuja redação tenha sido alterada por emenda posterior ao ano de 1995. A referida emenda buscou corrigir algumas impropriedades praticadas em seara de medida provisória. Amaro destaca as modificações trazidas nos seguintes termos: a) vedou a intromissão das medidas provisórias em algumas matérias; b) explicitou que, na instituição ou majoração de impostos sujeitos ao princípio da anterioridade, a medida provisória deve ser convertida em lei até o último dia do exercício de sua edição, sob pena de não ser eficaz no exercício seguinte àquele; c) ampliou a vigência para sessenta dias e previu sua prorrogação automática por igual período, não correndo, porém, no recesso do Congresso.194 O mesmo autor ressalta alguns absurdos jurídicos previstos pela mesma emenda quanto às medidas provisórias, notadamente o fato de que após a sua edição vige imediatamente como lei, e, caso em sessenta dias (com prorrogação possível de mais 193Existem casos em que a CRFB se contenta com a mera reserva de lei material (ato do Poder Executivo). Essas exceções restringem-se a possibilidade de alteração de alíquotas. Em primeiro lugar, apresenta-se o disposto no art. 153, § 1º, que autoriza o Executivo, nos limites da lei, a alterar a alíquota dos impostos sobre produtos industrializados, importação, exportação e operações de crédito, câmbio, seguro ou relativas a títulos ou valores imobiliários. Da mesma forma, pode ter sua alíquota reduzida ou restabelecida pelo Executivo a Cide incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível, nos termos do art. 177, § 4º, I, “b”, da CRFB (acrescido pela EC n. 33/2001). Por outro vértice, não se equipara a majoração de tributo e, por conseguinte não exige lei, a atualização do valor monetário da base de cálculo (art. 97, § 2º, CTN). 194AMARO, op. cit., p. 170. 80 sessenta), não for convertida formalmente em lei, perde a eficácia que lhe abrigou durante o período mencionado. Contudo, perdida a eficácia, a medida fica latente por mais sessenta dias, e se o Congresso permanecer inerte, a vigência miraculosamente se restabelece (art. 62, § 11º, CRFB), com força definitiva. Tal situação se repete no parágrafo seguinte do mesmo artigo, disciplinando a hipótese do Congresso aprovar medida com modificações, caso em que, sendo convertida em lei, entra em vigor com as alterações até o possível veto da parte substituída. Eduardo Jardim ressalta que apesar de se admitir que a medida provisória possa criar tributos em situações especialíssimas, tal possibilidade não pode prescindir da intervenção e participação do Legislativo para ratificar ou rejeitar os seus termos195. Tendo em vista a hierarquia das normas, é preciso que se destaque que a medida provisória tem força de lei ordinária, do que se pode concluir que não podem ser utilizadas para disciplinar matérias reservadas a outra espécie normativa. E ainda, os requisitos de relevância e urgência condicionam o Executivo ao editar as medidas, sendo que a real existência deles pode ser objeto de controle de legitimidade do exercício deste poder conferido ao Chefe do Executivo. 2.4.2 Princípio da Igualdade Tributária O princípio da igualdade196 tributária corresponde na seara do direito tributário à aplicação do princípio geral da isonomia jurídica estampado no art. 5º da CRFB, que determina que todos são iguais perante a lei197. Na verdade, afirma-se a garantia de igual 195JARDIM, op. cit., p. 166-67. 196O estudo sobre o princípio da igualdade será retomado no terceiro capítulo, notadamente em face de sua ligação estreita com a concretização da justiça. 197CRFB, art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...). 81 tratamento àqueles que se encontrarem em igual situação198, conforme dispõe o art. 150, II, da mesma Norma199. Para Harada “Este princípio tributário veda o tratamento jurídico diferenciado de pessoas sob os mesmos pressupostos de fato; impede discriminações tributárias, privilegiando ou favorecendo determinadas pessoas físicas ou jurídicas”200. Questão problemática se apresenta com a aplicação desse princípio em face do imposto instituído de forma progressiva. Na opinião de Machado tal conjugação é plenamente possível visto que o imposto progressivo “não fere o princípio da igualdade, antes o realiza com absoluta adequação”201, uma vez que quem possui maior capacidade contributiva deve pagar um valor de imposto superior porque somente desta forma estaria sendo igualmente tributado. Sobre o ponto enfocado, afirma Jardim que o princípio da igualdade tributária é totalmente compatível com a progressividade especificamente atrelada ao IPTU, visto que “a progressividade ‘in casu’ estaria graduando distintamente a tributação de signos de riqueza diferentes, o que traduz escorreita observância ao princípio da igualdade”202. Leonetti atesta que em se tratando de imposto sobre a renda o princípio da igualdade é efetivado através da aplicação dos critérios da generalidade (exige que todas as pessoas se sujeitem ao imposto), universalidade (exige que todas as manifestações de renda sejam tributadas pelo imposto) e da progressividade (exige a elevação das alíquotas conforme o 198 MACHADO, op. cit., p. 44. 199CRFB, art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proIbida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. 200HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 354. 201MACHADO, op. cit., p. 44. 202JARDIM, op. cit., p. 181. 82 aumento da renda do contribuinte)203. Frise-se, porém, que tais exigências, como por exemplo que o imposto de renda deve incidir sobre todas as pessoas – generalidade – podem ser ressalvadas nos caso de interesse público ou incidência de outro princípio constitucional, como o da capacidade contributiva. Tais possibilidades discriminatórias podem ser bem entendidas no caso de concessão de isenções, uma vez que necessariamente aquele que for contemplado pela regra isentiva estará recebendo tratamento diferente dos demais. Entretanto, não pode haver isenção sem obediência ao princípio da igualdade, de forma que a lei que concede o benefício não pode acarretar o estabelecimento de desigualdade jurídica formal dando tratamento desigual a pessoas que se encontram na mesma situação204. Nesses casos, o vazio da norma será preenchido pela valoração existente na razão de ser da regra, ou seja, na busca pela justiça, conforme será visto no capítulo que segue. 2.4.3 Princípio da anterioridade A anterioridade representa o postulado Constitucional205 delimitador da competência tributária na medida em que a exigibilidade do tributo se condiciona à existência de lei anterior. Desse modo, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem exigir tributos no mesmo exercício financeiro em que tenha sido publicada a lei que os instituiu ou majorou. O exercício financeiro se inicia em 1º de janeiro e finda em 31 de 203LEONETTI, Carlos Araújo. O imposto de renda como instrumento de justiça social no Brasil. Barueri: Manole, 2003. p. 53. 204HARADA, op. cit., p. 355. 205CRFB, art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III – cobrar tributos: (...) b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou. 83 dezembro de cada ano e corresponde ao “período de tempo para o qual a lei orçamentária aprova a receita e a despesa pública”206. A vertente principiológica da anterioridade vai além da exigência de lei anterior para o exercício da competência tributária. Como princípio na esfera constitucional, é corolária do princípio da segurança jurídica e o sentido de primar pelo transcurso de um lapso temporal antes que um tributo novo ou um aumento da carga tributária alcancem o contribuinte é evitar que este seja surpreendido, expressando a concepção de que a lei tributária “seja conhecida com antecedência, de modo que os contribuintes, pessoas naturais ou jurídicas, saibam com certeza e segurança a que tipo de gravame estarão sujeitos no futuro imediato, podendo dessa forma organizar e planejar seus negócios e atividades”207. A segurança jurídica traz consigo as concepções de previsibilidade e mensurabilidade a ela inerentes. Sobre a correlação entre o princípio da anterioridade e segurança jurídica, assinala Carrazza: De fato, o princípio da anterioridade vincula a idéia de que deve ser suprimida a tributação de surpresa (que afronta a segurança jurídica dos contribuintes). Ele não permite que, da noite para o dia, alguém seja colhido por uma nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis e seguras. E, mais do que isso: que tenha conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro, justamente para que possa planejar sua vida econômica.208 A anterioridade, conforme destaca Humberto Ávila, pode ser compreendida em duas dimensões: como princípio, tendo em vista a proteção do contribuinte em face da surpresa da tributação e, como regra, exigindo a existência de lei anterior para o aumento ou instituição da exação: Na perspectiva da espécie normativa que a exterioriza, a anterioridade é bidimensional. Sua dimensão normativa preponderante é de regra, na medida em que descreve o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo, proibindo a instituição ou majoração de tributos no mesmo exercício e que a lei que os instituiu ou aumentou foi publicada. Novamente é preciso realçar que a anterioridade possui sentido normativo indireto de princípio, na medida em que estabelece o dever de buscar um ideal de previsibilidade, de controlabilidade, de intelegibilidade e de 206AMARO, op. cit., p. 120. 207COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. 2. ed., rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 398. 208CARRAZZA, op. cit., p. 174. 84 mesurabilidade relativamente aos tributos que os entes federativos competentes irão instituir ou aumentar.209 O artigo 104 do Código Tributário Nacional (editado sob a vigência da Emenda n. 18/65) explicita o princípio e trata dos vários modos pelos quais se pode manifestar a instituição ou majoração de tributos210. É importante frisar que quando foi editado o Código Tributário Nacional, o primado se aplicava unicamente aos impostos sobre o patrimônio e a renda, uma vez que estes eram os únicos tributos para os quais se fazia esta exigência no texto da Emenda n. 18/65. Atualmente, ao revés, seu conteúdo se dirige a grande maioria dos tributos, pois a CRFB ampliou o leque de imposição. A aplicabilidade do postulado da anterioridade não atua na validade ou vigência da lei tributária, tão somente na sua eficácia, no sentido paralisá-la até o início do exercício seguinte à publicação211. Entretanto, a postergação dos efeitos da lei é insuficiente para o cumprimento fiel do sentido da norma, exigindo-se também que a espécie legislativa estabelece ou majore tributo somente venha a incidir sobre fatos acontecidos no exercício financeiro posterior a sua entrada em vigor, ou, em outras palavras, é preciso que a referida norma esteja em vigor no exercício anterior ao da ocorrência do fato imponível tributário. De outro modo, como alerta Carrazza “a Administração Fazendária, por meio do ardil de retardar a cobrança do tributo até o exercício seguinte, com facilidade tornaria letra morta o art. 150, III, ‘b”, da Constituição”212 A anterioridade pode se dar quanto ao ano-calendário, nos tributos em geral, ou à nonagesimal, alcançando as contribuições sociais preceituadas no art. 195, § 6º, da CRFB. 209ÁVILA, op. cit., p. 153. 210AMARO, op. cit.,p. 122. 211O primado da anterioridade não deve ser confundido com o da anualidade, vigente durante a Constituição de 1946, pelo qual nenhum tributo poderia ser cobrado sem prévia autorização orçamentária. 212CARRAZZA, op. cit., p. 173. 85 Salvo algumas exceções213, todos os tributos se submetem ao primado da anterioridade ano-calendário, inclusive o empréstimo compulsório de investimento público (art. 148, II, CRFB), o que se apresenta, no relato da maioria dos doutrinadores, como uma contradição, uma vez que o requisito de urgência disposto naquele artigo se torna inconciliável com o princípio. A partir da Emenda Constitucional n. 42/03214 tornou-se obrigatório aguardar o período de 90 (noventa dias) para a cobrança de determinados tributos, exigência antes dirigida somente às contribuições sociais215. O prazo nonagesimal, extensivo a uma gama maior de exações, ganha relevo no sentido de reforçar o baluarte da segurança jurídica, especialmente porque: Não se trata de regra substitutiva da regra da anterioridade, mas de regra cumulativa: além de o imposto só poder ser cobrado a partir do primeiro dia útil do exercício seguinte àquele em que a lei que o instituiu ou aumentou foi editada, a exigência só poderá ser feita, de qualquer modo, noventa dias após a publicação da lei. Esse mecanismo fortalece a segurança jurídica dos cidadãos.216 213Através da disposição contida no §1º, do art. 150 da CRFB, o legislador constituinte excepcionou de qualquer exigência de anterioridade o imposto sobre a importação (art. 153, I), exportação (art. 153, II), produtos industrializados (art. 153, IV), operações de crédito, câmbio, seguros, títulos ou valores mobiliários (art.153, V), aos impostos extraordinários (art. 154, II), o atendimento de despesas extraordinárias em função de calamidade pública ou guerra externa. (art. 148, I) ), e a contribuição sobre movimentação financeira (art. 74 do ADCT). Da mesma forma, não obedecem ao princípio da anterioridade a redução ou restabelecimento da alíquota Cide (a ser efetivada por ato do Executivo) incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível, nos termos do art. 177, § 4º, I, “b” e do ICMS incidente sobre lubrificantes e combustíveis derivados de petróleo, na forma do art. 155, § 4º, IV, “c”, ambos da CRFB. A questão da redução da alíquota não gera nenhuma discussão haja vista que a redação concedida ao princípio da anterioridade exige sua observância em casos de instituição ou aumento de tributo. No que tange ao restabelecimento é que se poderia questionar quanto a uma majoração às avessas, porém, é corrente na doutrina o entendimento de que não trata de aumento e sim de retomar aquilo que já era previsto anteriormente. Não sendo tal prática considerada majoração, aceita-se as exceções previstas nestes artigos. 214 CRFB, art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III – cobrar tributos: (...) c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b. 215É necessário destacar que em se tratando de contribuições sociais a regra nonagesimal aplica-se sozinha, ou seja, as referidas exações não devem respeito ao princípio da anterioridade, não sendo, aqui, cumulativas as exigências de sustação da eficácia da norma que importe em criação ou aumento de tributo. 216ÁVILA, op. cit., p. 157. 86 Anteriormente à mencionada Emenda, os autores dedicados ao estudo do direito tributário, considerando que a razão da anterioridade se compreende pela necessidade de evitar que a tributação surpreenda o contribuinte, criticavam a disposição constitucional do princípio duramente, asseverando que na forma como se encontrava redigido, nada impedia que um dado tributo fosse instituído ou aumentado no final de um exercício e cobrado já no início do outro, acarretando a exigência de novo tributo ou aumento de antigo, com um lapso de poucos dias. Essa inquietação doutrinária, diretamente dirigida à proteção do contribuinte contra às burlas implícitas operadas contra o primado, sem dúvida, em muito impulsionaram a mencionada alteração constitucional. Unicamente com o fim de apresentar os questionamentos recorrentes, sem, obviamente, o escopo de esgotar a discussão, destaca-se a intranqüilidade doutrinária quanto à incidência do referido princípio quando a norma tratar da alteração das formas e prazos de pagamento da exação. O texto da Constituição não dispõe expressamente tal aplicabilidade, o que, na visão de Carrazza, não a afasta, visto que “as normas jurídicas devem ser interpretadas mais por seus fins, pelas razões que nortearam sua edição ‘ratio iuris’, do que pelas palavras que as integram”217, de modo que, pela sua doutrina, um tributo pode ser majorado tanto pelo aumento de sua base de cálculo ou alíquota - forma direta, como indiretamente pela alteração dos índices aplicáveis na ocasião do pagamento. Finalmente, uma outra questão que merece destaque é a caracterização da anterioridade como direito individual, assumindo, por conseqüência, natureza de cláusula pétrea. Nesta sendeira, Carrazza assinala que “o contribuinte tem o direito constitucional 217CARRAZZA, op. cit., p. 191. 87 subjetivo de ver acatado, pelas pessoas tributantes, o princípio da anterioridade218, que unicamente poderá vir a ser afastado nos casos previstos pela própria CRFB. Jardim se posiciona na controvérsia afirmando que na essência o princípio da anterioridade é uma limitação ao poder do Estado, o que não autoriza a caracterização de direito individual, embora proteja os contribuintes por via reflexa. Usa como escoro a argumentação de Hart, pelo qual os limites não significam a presença de um dever, mas a ausência de um poder jurídico219. Na singela concepção adotada neste trabalho, entende-se que o primado que determina a exigência de determinados tributos somente no exercício financeiro posterior à publicação da lei que os instituiu ou aumentou, somado à necessidade de respeito ao lapso temporal introduzido pela EC n. 42/03, integram, para os gravames que não foram excepcionados, o denominado estatuto do contribuinte, sendo, portando, direito subjetivo do contribuinte ser tributado conforme determinado pela Constituição. 2.4.4 Princípio da Irretrotroatividade A segurança jurídica é alcançada em grande parte pelo respeito ao princípio da irretroatividade das leis. A CRFB, em seu art. 5º, XXXVI, proclama a abrangência de tal princípio determinando que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. 218CARRAZZA, op. cit., p. 186. 219JARDIM, op. cit., p. 172. 88 O art. 150, III, “a”, da CRFB220 expressamente impede que a lei que cria ou aumenta tributos alcance fatos geradores221 ocorridos antes do início de sua vigência e se constitui em norma protetiva do contribuinte. Tal pode acontecer quando o Poder Legislativo pretender dar efeito retroativo a uma lei e alterar as condições elementares do Pacto Constitucional, de forma a pôr os cidadãos à mercê não somente do direito vigente, como também de decisões políticas futuras e imprecisas. Sobre o tema, traz-se à colação o escólio de Carraza, ipsis literis: Lei retroativa, é oportuno assertoar, é aquela que rege fato ocorrido antes de sua vigência. Ou se quisermos: há retroatividade quando a lei alcança atos os situações já consumadas antes de sua entrada em vigor, adjudicando-lhes determinados efeitos jurídicos. A regra geral, pois, é no sentido de que as leis tributárias, como, de resto, todas as leis, devem sempre dispor para o futuro. Não lhes é dado abarcar o passado, ou seja, alcançar acontecimentos pretéritos. Tal garantia confere estabilidade e segurança às relações jurídicas entre Fisco e contribuinte.222 É cediço que a lei pode fixar a data inicial e final de sua vigência. Porém, a doutrina abalizada afirma que o estabelecimento de vigência anterior à data de publicação, salvo casos particulares, coloca a segurança jurídica em risco. Abra-se um breve hiato para registrar que a publicação da lei é, a rigor, condição de sua existência jurídica. A data da publicação, porém, não é aquela que consta do Diário Oficial, e sim da efetiva circulação do mesmo, o que, de forma inconteste, dá publicidade a norma. Nesse sentido o entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal223. 220CRFB, art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III – cobrar tributos: (...) a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da leis que os houver instituído ou aumentado; 221Sobre a utilização da expressão fatos geradores, Luciano Amaro faz uma ressalva no sentido de que, na verdade, o fato anterior à vigência da lei que instituir tributo não é gerador. De forma que somente se poderia denominar de gerador fato anterior à lei quando esta vise aumentar, nunca instituir tributos. In: Direito tributário brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 118. 222CARRAZZA, op. cit., p. 319. 223Ver: RTJ 90/504. Hugo de Brito Machado destaca o ocorrido com a Lei nº 8383/91, publicada no DOU do dia 31.12.91, sendo que a circulação se deu apenas no dia 2.01.92. MACHADO, op. cit., p. 244. 89 A irretroatividade das leis atua como instrumento para a segurança jurídica na medida que acarreta a intangibilidade dos atos e fatos lícitos antes praticados224. Dessa forma, fácil é perceber a quase inutilidade do princípio que determina a instituição de tributos através de lei (legalidade estrita), se tais leis pudessem alcançar fatos já consumados. A fim de realçar a não aplicabilidade da lei sobre fatos já consumados, Hugo de Brito Machado exemplifica que um possível aumento de alíquota do imposto de importação não alcança importações já autorizadas, com mercadorias já adquiridas pelo importador, uma vez que o desembaraço aduaneiro é apenas um momento eleito pelo legislador para facilitar a cobrança do referido tributo, não se constitui em seu fato gerador, que, como disposto no art. 19 do CTN, é a entrada da mercadoria em território nacional225. Para melhor compreensão do alcance de tal princípio os autores costumam usar, como modelo para entendimento, o postulado semelhante oriundo da seara penal que determina a inexistência de crime sem prévia cominação legal. No direito tributário, por sua vez, não há tributo sem prévia descrição legal, uma vez que a lei em vigor à época da ocorrência do fato imponível é que deve ser aplicada. Jardim colore o estudo da irretroatividade trazendo à baila o status de garantia individual que tal primado denota, assim, sendo elevado a figura de direito e garantia individual, a irretroatividade não pode ser objeto nem de proposta de revogação, mesmo por emenda constitucional, por força do disposto no art. 60 da Carta Magna226. Destarte, pela força do princípio ora em debate, para ser legítima, a ação do Fisco deve ser previsível, de forma que a lei que cria ou aumenta tributo não alcance fatos ocorridos em época anterior à de sua entrada em vigor. 224CARRAZZA, op. cit., p. 318. 225Ibid., p. 245. 226JARDIM, op. cit., p. 155. 90 2.4.4.1 As possibilidades de retroação das leis tributárias O quadro apresentado alhures corresponde a regra geral em matéria de aplicabilidade das leis tributárias, que, em se tratando de criação ou aumento de tributos é absoluta. Algumas exceções são abertas em casos bem específicos. Por razões ideológicas, algumas leis que tratam da matéria tributária podem ser retroativas, desde que assim disponham expressamente. A retroatividade está ligada intrinsecamente à concessão de alguma vantagem direta ou indireta ao contribuinte, como por exemplo: isenção, concessão de um prazo mais lato para recolhimento do tributo, etc. É preciso que se note que as leis penais que de alguma forma beneficiem o infrator, sempre serão retroativas, por força do disposto no art. 5º, XL, da CRFB227. Por outro lado, as leis tributárias benéficas aos contribuintes, somente terão tal efeito se expressamente assim dispuserem228. Uma das hipóteses de aplicabilidade retroativa da lei tributária está prevista no art. 106, I, do CTN, pelo qual as leis chamadas interpretativas retroagirão até a data da entrada em vigor da lei interpretada. Nas palavras de Jardim, a lei interpretativa “não cria direito novo, mas tão-somente explicita mandamentos fluidos ou vagos ou mesmo obscuros da lei interpretada”229. Carrazza critica duramente tal previsão afirmando que na verdade não existem leis interpretativas, em primeiro lugar porque não é objeto de lei interpretar outra lei, tal função compete aos aplicadores, notadamente o Poder Judiciário. Ainda, mais, no mesmo raciocínio, 227CRFB, art.. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...) XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. 228CARRAZZA, op. cit., p. 319; AMARO, op. cit., p. 119. 229JARDIM, op. cit., p. 206. 91 leis interpretativas necessitariam de outras que as interpretassem, formando um ciclo vicioso230. Na mesma esteira, Amaro aduz que nem sob o manto de apenas interpretar uma lei anterior pode uma lei tributária alcançar o passado, com o fito de pretensamente explicitar a criação ou aumento de tributo231. Tal autor aceita a retroatividade da lei tributária que vise corrigir uma situação de inconstitucionalidade, porém, de qualquer forma, tal retroatividade em nenhuma hipótese pode agravar a situação do contribuinte. Dito de outra maneira, o contribuinte que cumpriu todos os requisitos estampados na lei, que depois venha a ser declarada inconstitucional, fruiu de um benefício, por exemplo de isenção, e não pode ter sua condição piorada232. Da mesma forma que a irretroatividade deve permear a aplicabilidade das leis tributárias, deve também alcançar os atos do Poder Executivo e as decisões judiciais, uma vez que o que vale para o legislador, vale para o administrador e para o juiz. A aplicabilidade das leis tributárias é bem delineada pela irretroatividade, no sentido que tais leis, salvo casos extremos, valem para o futuro. Até quando a referida lei objetive beneficiar o contribuinte – não se tratando de infrações, somente será retroativa se assim dispuser expressamente. Dessa forma, mesmo que uma lei nova tenha reduzido a alíquota de certo tributo, a diminuição somente terá validade para o futuro. Em se tratando de sanção às infrações tributárias, o CTN ordena a aplicação retroativa da lei nova sempre que for mais favorável ao acusado, prevalecendo a lei mais branda (lex 230CARRAZZA, op. cit., p. 320. 231AMARO, op. cit., p. 119. 232Ibid., p. 320. 92 mitior). Delineando bem tal possibilidade de retroação, o art. 106, II, do CTN233 determina que a lei se aplica ao ato ou fato pretérito, desde que presentes algumas condições. Amaro opõe-se ao expressado no dispositivo acima destacando que as alíneas praticamente se repetem, com uma consideração especial ao final da alínea “b” que exclui a aplicação da lei mais benigna nas hipóteses de fraude e nas em que a infração tenha implicado em falta de pagamento de tributo, o que, nas palavras do autor “levaria ao exagerado rigor de só admitir a retroatividade benigna em caso de inocente descumprimento de obrigações formais”234. Para resolução do embate, o autor supra opta pela aplicação do art. 112 do CTN, o qual, nesta matéria, ordena a aplicação do princípio in dúbio pro reo, prevalecendo, pois, o contido na alínea “a”. 2.4.5 Liberdade de Tráfego A CRFB veda que se imponham limitações ao tráfego de pessoas ou bens, na forma do art. 150, V235. Com esse dispositivo, objetiva-se proteger a liberdade de locomoção proibindo a instituição de tributo cuja hipótese de incidência seja elemento essencial a transposição de fronteira interestadual ou intermunicipal, porque um possível gravame poderia estabelecer um limite inaceitável a essa transposição. Aqui se poderia questionar que o princípio proteção à liberdade de tráfego não seria compatível com a cobrança do ICMS. Ocorre que, na verdade, tal postulado visa exatamente 233CTN, art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: (...) II - tratando-se de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de trata-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei ao tempo de sua prática. 234AMARO, op. cit. p. 198. 235CRFB, art. 150, V - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (...) estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público. 93 não onerar tal transposição interestadual ou intermunicipal de mercadorias unicamente pelo fato de ocorrer a passagem. Destaque-se, bem assim, a ressalva contida no artigo supra citado, a qual torna lícita a cobrança de pedágio apesar de ser uma forma limitativa da locomoção de bens ou pessoas. A natureza jurídica do pedágio é tema que vem há muito causando controvérsias na doutrina. Carrazza, utilizado-se especialmente do critério da localização, afirma que desde a Constituição de 1988 é inegável sua natureza tributária, uma vez que mencionado na seção “limitações do poder de tributar” (Seção II do Capítulo I do Título VI), ou seja, inserido em dispositivo que cuida dos tributos. Esse autor, juntamente com Luiz Emygdio F. da Rosa Jr entendem que o pedágio se constitui em taxa de serviço236, uma vez que, apesar do nomem iuris, é o serviço público de conservação da rodovia que autoriza sua instituição. Contrapondo esse posicionamento, Carlos Araújo Leonetti sustenta que o pedágio não possui sempre natureza tributária. Parte da constatação de que os serviços públicos podem ser remunerados tanto por tributos quanto por tarifas, e, sendo prestados diretamente pelo Poder Público necessariamente serão custeados por taxa237. No caso do pedágio, se a via for administrada diretamente pelo Poder Público, seja por órgão da administração direta, autarquia ou empresa controlada pelo Estado, a exação terá natureza tributária, cobrada mediante taxa. Ao contrário, sendo a via explorada por particular, por meio de concessão, autorização ou permissão, estaria o legislador livre para escolher. 236CARRAZZA, op. cit., p. 490; ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro & direito tributário. 14. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 303. 237LEONETTI, Carlos Araújo. Natureza jurídica do pedágio. Revista Seqüência, Florianópolis, ano 25, n. 49, p. 135-152, dez. 2004. Cf., p. 145. 94 Mesmo assumindo natureza tributária, Leonetti discorda da classificação de “taxa de serviço” acolhida pela doutrina em geral. Assinala que, sendo remunerado mediante tributo, integraria uma terceira espécie de taxa, por ele denominada “taxa-pedágio”238. O tema desperta diversas outras possíveis discussões como a compulsoriedade de utilização da via como critério de definição da natureza jurídica, possibilidade de exigência pelos municípios, adequação da cobrança aos princípios constitucionais. Entretanto, sob pena de tangenciar o foco do estudo, segue-se na apreciação dos outros princípios. 2.4.6 Proibição de Confisco Intrinsecamente ligado ao princípio da capacidade contributiva encontra-se a proibição de utilização de tributo com efeito de confisco, estampado no art. 150, IV da CRFB239. Apesar do conceito de confisco não ser preciso, pode-se considerar como confiscatório o tributo que atinja o contribuinte de tal forma que viole seu direito de propriedade, sem correspondente indenização. Ao Judiciário cabe afirmar quando um tributo está sendo utilizado com o efeito proibido pela Constituição, bem como tal verificação deve levar em conta todo o sistema em que o tributo estaria sendo exigido. Em outras palavras, deve ser avaliado em razão de toda a carga tributária imposta ao contribuinte240. Destaque-se que a vedação estampada se refere exclusivamente a tributos, ou seja, não se aplica às penalidades pecuniárias (multa). Essa especificação se faz importante visto que a multa se afasta do tributo considerando que a hipótese de incidência do último é sempre lícita, 238LEONETTI, op. cit. 239CRFB, art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) IV - utilizar tributo com efeito de confisco. 240MACHADO, op. cit., p. 47. 95 e assim, a multa se constitui necessariamente em sanção de ato ilícito, podendo, desta feita, acarretar confisco. Ressalte-se, outrossim, que tal interpretação não é tranqüila nos tribunais241. É expressivo o entendimento jurisprudencial no sentido de que não estabelecendo a Constituição ou a lei parâmetros para definir quando o tributo terá “efeito de confisco” deverá ser aplicado o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil “o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, considerando-se, pois, confiscatórias multas de 100% sobre o valor do tributo por exemplo. É preciso ter-se em conta, ainda, a diferença finalística entre multa e tributo, o que bem realça a impossibilidade da primeiro ser confiscatória. Os tributos visam o atendimento dos recursos que o Estado precisa para o cumprimento das funções e serviços públicos, integrando, portanto, a receita ordinária. A multa, por sua vez, tem por objetivo desestimular um comportamento, constituindo-se em receita extraordinária ou eventual. Sendo receita ordinária, o tributo deve ser em valor suportável ao contribuinte. A multa, por outro lado, para que possa alcançar seu escopo deve ser essencialmente um encargo pesado, a fim de que as condutas indesejáveis pelo ente tributante sejam efetivamente desestimuladas. 2.4.7 Princípio da Capacidade Contributiva O princípio da capacidade contributiva encontra-se positivado no art. 145, §1º, da CRFB, e, de um modo geral, pode ser traduzido pela noção de que o contribuinte somente pode ser tributado em consonância com sua capacidade de contribuir, ou melhor, de acordo com suas possibilidades financeiras de efetivar a prestação. 241Do Tribunal de Justiça , por amostragem, destaca-se os seguintes julgados: Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2005.027324-4, de Criciúma, Relator Des. Jaime Ramos, julgado em 25/10/05 e Apelação Cível n. 2005.021362-6, de Criciúma, Relator Des. Newton Trisotto, julgado em 20/09/05. 96 No decorrer deste capítulo, tratou-se dos limites constitucionalmente impostos ao exercício da competência tributária e, em que pese o princípio da capacidade contributiva estar inserido entre essas restrições, deixar-se-á para apreciar seu conceito, conteúdo e aplicabilidade juntamente com as noções de justiça a serem estudadas no capítulo seguinte, a fim de evitar repetições desnecessárias, bem como em homenagem à intenção primordial deste trabalho de posicionar a espécie tributária como o critério de diferenciação mais adequado a preencher o conteúdo da igualdade. 97 3 O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE COMO INSTRUMENTO PARA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA TRIBUTÁRIA O entendimento de que a Constituição é constituída por normas jurídicas, que podem assumir a forma de regras ou princípios e, especialmente, a força normativa dos últimos é inarredável para esta parte final do trabalho. A Constituição, com a evolução do pensamento constitucional, notadamente pela configuração da Teoria da Constituição, deixou para trás a conotação abstrata dos princípios elevando-os à ordem concreta das normas jurídicas, com positividade. Na feição do constitucionalismo, a Constituição além de ser instrumento de limitação do Poder, preocupa-se com seu conteúdo, já que o excesso de formalismo acarreta sua vulnerabilidade a qualquer preenchimento. Ou seja, desde que adotadas as formalidades previstas, qualquer instrumento pode ser denominado de Constituição. A fim de efetivar a Constituição normativa, os preceitos inseridos no Texto têm que refletir os valores mais importantes da Nação: a liberdade, separação e controle do poder, justiça, fraternidade, além de outros. A transposição desses valores para o corpo da Constituição atua também na formação da vontade de Constituição. Nessa perspectiva, o poder do Estado tem seu campo de atuação delineado pela Constituição. Na proteção dos cidadãos, a Constituição garante direitos e limita o Poder. Na esfera da tributação, a Constituição não cria o tributo, mas partilha a competência tributária entre os entes federativos. A divisão de competência é ladeada, entretanto, pelas limitações constitucionais ao poder de tributar. Juntamente com os princípios constitucionais, as imunidades tributárias exercem papel importante no desenho das possibilidades de exigência de tributos, constituindo-se em situações que a Constituição entendeu por bem livrar das exações, por estarem relacionadas com algum fim público. Os princípios constitucionais limitadores do exercício da competência tributária trazem em seu bojo os contornos positivos e negativos da tributação. Estabelecem de que 98 forma os tributos podem ser exigidos. Na CRFB formaram o denominado Estatuto do Contribuinte. Desta feita, fincada a normatividade dos princípios constitucionais, com realce aos princípios limitadores do exercício da competência tributária, e, passada a análise de cada um dos postulados, volta-se a atenção às noções de justiça e às feições do princípio da capacidade contributiva 3.1 NOÇÕES DE JUSTIÇA 3.1.1 O meio termo aristotélico O livro V da Ética a Nicômaco foi o primeiro estudo analítico da noção de justiça e Aristóteles já chamava a atenção sobre a ambigüidade e multiplicidade de seus aspectos e afirmava ser ela considerada como a principal virtude, a fonte de todas as outras, sendo seu valor usualmente confundido com a moralidade vista sob o enfoque mais geral possível. O estagirita aprecia a justiça na sua feição individual, constatando que não é inata ao ser e sim uma disposição de caráter que torna as pessoas inclinadas “a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo”242. É correto que pode ser compreendida pelos homens de forma a se impor sobre as paixões, o mesmo ocorrendo no seu aspecto geral, quando se aceita o governo das leis acima da vontade e arbítrio humano. Bittar, estudando a justiça com base na percepção aristotélica, analisa as principais obras do filósofo no contexto histórico-cultural helênico e adverte que “a distinção hoje operada entre ética social e ética individual não era realizada ao tempo de Aristóteles porque 242ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Traduzido por Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosa. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973. p. 321. (Os Pensadores). 99 ambas eram fundidas num único objetivo (...). O que é justo para a coletividade também será para o indivíduo”243. Aristóteles relaciona a justiça com aquelas atitudes que visam produzir e preservar a felicidade e todos os elementos que a compõem, e afirma ser a virtude mais completa “porque quem a possui pode exercer não só sobre si mesmo, mas também sobre seu próximo”244. Pode-se perceber na obra uma introdução sobre o conceito de alteridade, de preocupação com o outro, importância do outro, especialmente quando assinala que “Aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como uma determinada disposição de caráter e em si mesmo, é virtude”245. Justiça e igualdade são consideradas noções muito assemelhadas, posto que para ele “o igual é o meio termo entre o excesso e a falta. Por meio termo no objeto entendo aquilo que é eqüidistante de ambos os extremos”246. Não é demais ressaltar que os princípios do adequado, da justa medida e do equilíbrio são as expressões mais flagrantes da cultura helênica, veneradora da proporcionalidade estética e do sopesamento dos opostos. O equilíbrio almejado por toda o ambiente que circundou o pensamento aristotélico leva a afirmação de que aqueles que não são iguais não poderão receber coisas iguais e as distribuições devem ser feitas de acordo com o mérito da pessoa. A multiplicidade dos aspectos que envolvem a justiça obrigou Aristóteles a dividi-la em dois grandes campos: justiça total e justiça particular. A justiça total consiste na observância da lei. Por essa perspectiva, tudo que é legítimo é justo. Essa concepção “seria o gênero, no sentido mais amplo que se pode atribuir ao termo. 243 BITTAR, Eduardo C. B. A justiça em Aristóteles. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 81. 244ARISTÓTELES, op. cit., 322. 245Ibid., p. 323. 246Ibid., p. 272. 100 Também chamada de justiça universal ou integral”247 e a injustiça, por sua vez, seria o descumprimento dos preceitos mantenedores da ordem e harmonia políticas. O justo particular, por outro lado, refere-se ao outro singularmente identificado, ao relacionamento entre as partes. Nesta acepção, distingue, ainda, justiça corretiva e distributiva, ambas dirigidas aos indivíduos em sua conotação pessoal, mas de forma um pouco diferenciada. A primeira se traduz na aplicação de um juízo corretivo nas transações realizadas entre os indivíduos. “Trata-se de uma justiça apta a produzir uma reparação nas relações”248. Consiste no intermediário entre a perda e o ganho e o juiz é quem tem o dever de estabelecer a igualdade ou justiça, o igual é o intermediário. A justiça distributiva está ligada às repartições levadas a efeito pelas normas, seja de dinheiro, de honras, de cargos, ou quaisquer outros bens sujeitos à participação dos governados. Relaciona-se tanto com a atribuição de bens quanto de encargos (responsabilidades e tributos por exemplo)249. Constitui-se, portanto, num liame público-privado pressupondo “uma relação de subordinação entre as partes que se relacionam, entre aquele que distribui e aqueles que recebem”250. A injustiça se revela no percebimento de uma quantia menor de benefícios ou maior de encargos do que seria realmente devido. Ao contrário, a justiça se materializa na divisão de forma proporcional segundo um critério pré-determinado, já que, como assinala Aristóteles “O justo é, pois, uma espécie de termo proporcional e injusto é o que viola a proporção”251. 247BITTAR, op. cit., p. 89. 248Ibid.,p. 94. 249Ibid. 250Ibid., p. 95. 251ARISTÓTELES, op. cit., p. 325. 101 No que tange ao critério a ser necessariamente eleito para a aplicação desta espécie de justiça, Bittar, no esteio do pensamento aristotélico, assinala que “É certo que nem todos são iguais e que nem todos merecem as mesmas quantidades de benefícios e ônus, e é exatamente por isto que um critério se elege para a diferenciação eqüitativa entre os membros da sociedade”252. Por esses argumentos, inclusive pela estreita ligação estabelecida por Aristóteles entre os conceitos, pode-se entender que a justiça distributiva seria a igualdade de caráter proporcional. 3.1.2 Fórmulas de justiça distributiva Na obra Ética e Direito, Perelman, filósofo preocupado eminentemente com a questão do justo, investiga as noções de justiça. Finca, já no início do texto, sua despretensão em conceber um ideal que se deva venerar mais do que os outros. Em outras palavras, inclusive pela impossibilidade demonstrada durante a argumentação, ressalta que não deseja firmar o convencimento acerca de que uma única concepção de justiça poderia corresponder ao ideal perseguido por todos os homens253. Parte daí a idéia inaugural de que a justiça sempre foi buscada pelos povos. Pela pluralidade de variantes a serem consideradas, o autor admite tornar-se uma das tarefas mais difíceis estabelecer até mesmo uma idéia inicial a respeito. A dificuldade do tema pode ser exprimida pela confiança de que a razão deveria estabelecer de forma segura a diferença entre o justo e o injusto, mas, tal distinção consistiria, em última análise, em toda ciência do bem e do mal. 252BITTAR, op. cit., p. 98. 253PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Traduzido por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 102 Diante da impossibilidade de enumerar todas as noções de justiça distributiva254, o autor polonês elegeu seis, que, no seu entender, melhor as exprime ou condensa e podem ser assim resumidas: a cada qual a mesma coisa, a cada qual segundo seus méritos255, a cada qual segundo suas obras, a cada qual segundo suas necessidades, a cada qual segundo sua posição e a cada qual segundo a lei lhe atribui256. Pela primeira concepção todos os seres devem ser tratados da mesma maneira, desprezando qualquer particularidade; na segunda, não se exige uma igualdade absoluta, mas proporcional a uma qualidade inerente: o mérito da pessoa. Já aqui aparecem as questões conflitantes acerca de como estabelecer os critérios para definir esse mérito e, apesar de ter optado por esse elemento diferenciador, Aristóteles já adiantava sobre suas dificuldades257. Na seguinte, a distinção se dá apresenta puramente na adoção do critério, que na anterior era moral (levando em conta a ação e os sacrifícios do ser) e nesta aprecia somente os resultados. A quarta objetiva aliviar os sofrimentos daqueles que não conseguem satisfazer suas necessidades essenciais. Essa forma, como qualquer outra que elege determinadas características a serem vislumbradas nas pessoas para aplicação da noção de justiça escolhida, para ser aplicável precisa de uma base formal sobre o conceito de necessidade, em virtude das divergências ocasionadas pelas inúmeras variantes possíveis. A solução partiria da definição de um “mínimo vital”258 a fim de garantir a cada pessoa a satisfação de suas responsabilidades familiares básicas, ou, de outro modo, o atendimento às necessidades primárias, tais como: alimentação, saúde, educação e moradia. 254Pode-se considerar as noções mostradas por Perelmam como fórmulas derivadas do conceito de justiça distributiva apresentada inicialmente por Aristóteles, uma vez que relacionadas com divisão de bens, de encargos, ou seja, com repartição de uma forma geral. 255Critério adotado por Aristóteles para realização da justiça particular distributiva. 256PERELMAN, op. cit., p. 9. 257Cf. ARISTÓTELES, op. cit., p. 325. 258Expressão utilizada por Ricardo Lobo Torres para denominar a parcela de rendimentos não tributáveis e será melhor apresentada na parte subsequente do trabalho. 103 Sobre a noção “a cada um segundo suas necessidades”, extraí-se dos escritos de Perelman: É raro que se procure aplicar a fórmula ‘a cada um segundo suas necessidades’ a necessidades mais refinadas, mais individuais. Isso porque, e essa é a diferença essencial entre a caridade e essa fórmula de justiça que dela mais se próxima, a justiça só se aplica a seres considerados como elementos de um conjunto, da categoria essencial, ao passo que a caridade considera os seres como indivíduos e leva em conta suas características próprias.259 Em suma, empregar a referida acepção de justiça acarreta inevitavelmente na distinção entre as necessidades essenciais e outras assim não consideradas, bem como na hierarquirização das eleitas. A quinta concepção se traduz na mais aristocrática de todas, no sentido estabelecer que certas pessoas devam receber um tratamento diferenciado em face da posição por elas ocupada, a qual se deve notadamente à origem, critério este estritamente social, na maioria das vezes hereditário, pressuposto e independente de qualquer atitude do beneficiário. Já na última idéia, o justo se apresenta em atribuir a cada um o que a lei determina, e sendo a lei o critério disciplinador do tratamento, justiça seria aplicar a mesma lei às situações que nela se enquadrem perfeitamente. À essa concepção se denomina justiça estática, uma vez que se sustenta na manutenção da ordem estabelecida, ao contrário das outras, que, pela faculdade de acarretarem mudanças nessa ordem, poderiam ser chamadas de dinâmicas. A apreciação das noções de justiça foi realizada de forma um pouco diferenciada por Kelsen na obra O problema da justiça, na qual o conceito de validade das normas (abstração dos valores), como foi trazido na primeira parte do trabalho, permanece firme, considerando a ligação já de plano estabelecida entre o justo e a normatividade. A conduta social do indivíduo pode ser considerada justa quando corresponde a uma norma que prescreve esse comportamento. Todavia, mesmo com essa correlação, a validade 259 PARELMAN, op. cit., p. 26. 104 da norma positiva independe da validade da norma da justiça, e, sendo assim, considerar uma norma injusta não acarreta na sua invalidade260. Para Kelsen, as normas de justiça podem ser do tipo metafísico, provenientes de uma instância transcendental além do conhecimento humano, ou racional, aptas a serem compreendidas pela razão humana. Dentre as últimas, analisa as fórmulas consideradas mais importantes: “a cada um o que é seu”, “regra de ouro” (tratar os outros conforme gostaria de ser tratado), imperativo categórico de Kant, costume como chave da justiça, meio termo aristotélico (virtude como ponto de equilíbrio entre o excesso e a falta), princípio retributivo, equivalência entre prestação e contraprestação, justo na visão comunista de Marx, preceito do amor ao próximo, a liberdade como fundamento, o contrato social e o ideal de justiça da democracia liberal. Após esmiuçar uma a uma, conclui pela insuficiência das proposições sem a existência de uma ordem normativa que lhes preencha, o que em muito se aproxima daquela trazida por Perelman. O exame positivista kelsiano, porém, ao invés de apresentar as noções e tecer considerações a respeito, é permeado por duras críticas. Observa Kelsen que a fórmula de Aristóteles não explica quais as diferenças que são relevantes, "diz apenas que, se forem conferidos direitos e se dois indivíduos forem iguais, direitos iguais devem ser conferidos a eles". Nesse contexto, apresentam-se justas tanto a ordem jurídica comunista como a capitalista, sendo justo também que sejam dados direitos políticos somente a indivíduos de determinada raça ou casta. Definir quais desses critérios é justo constitui-se, exatamente, na questão da justiça261. Perelman, por sua vez, partindo da premissa de inexistência de uma concepção perfeita, procura pesquisar os pontos de convergência entre as várias noções com o fito de 260KELSEN, Hans. O problema da justiça. Traduzido por João Baptista Machado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 261Ibid., p. 24. 105 tentar estabelecer uma fórmula unânime, na qual pelo menos alguns pontos seriam aceitos como adequados por todas as teorias. A saga de encontrar as similitudes entre as diversas concepções de justiça se materializa em uma definição formal ou abstrata e culmina, num primeiro momento, na observação de que a noção de justo traz a lume o consenso sobre a igualdade. Desde Platão, Aristóteles e São Tomás de Aquino, juristas e filósofos concordam que “A idéia de justiça consiste numa certa aplicação da idéia de igualdade”262. Entretanto, mesmo aceitando o entrelaçamento necessário entre os termos, a semelhança entre as noções é parcial, já que seria impossível conciliar os conceitos “a cada um segundo seus méritos” com “a cada segundo suas necessidades” por exemplo. Neste ponto, Aristóteles já observava que é necessário existir uma certa particularidade diferencial entre aqueles aos quais vai se aplicar a justiça. A justiça formal ou abstrata seria pois “um princípio de ação segundo o qual os seres de uma determinada categoria essencial devem ser tratados de uma mesma forma”263. Tal aceitação de que ser justo é tratar os seres de maneira igual leva, seguindo esse caminho, a busca pelo preenchimento da idéia vazia e cada noção fornece uma resposta diferenciada acerca dos critérios que devam ser adotados para a realização da igualdade pretendida. O desacordo começa justamente na passagem da justiça formal, seres com característica igual devem ser tratados de forma igualitária, para a justiça concreta, pela qual é indispensável a pressuposição de uma escala de valores para a escolha dos critérios de diferenciação a fim de que os seres possam ser incluídos ou não nas denominadas por Perelman “categorias essenciais”. 262 PERELMAN, op. cit., p. 14. 263 Ibid., p. 19. 106 Na diferenciação entre justiça formal e justiça concreta não se pode deixar de apresentar, mesmo que brevemente, a idéia de equidade. Perelman assinala o apego à equidade quando se tornar preciso minorar diferenças perceptíveis na aplicação de uma regra de justiça que tenha deixado de fora uma característica na inclusão dos seres em uma categoria essencial a ser privilegiada264. A inserção dos seres em determinada categoria pressupõe, como já dito, na escolha dos critérios a serem adotados para a diferenciação. O conjunto desses critérios, por sua vez, traduz-se na fórmula de justiça concreta. Nessa esteira, eleitos os elementos diferenciadores “agir segundo a regra é aplicar um tratamento igual a todos aos que a regra não distingue”265 e, por esse raciocínio, conclui o autor que não seria a noção de igualdade o alicerce da justiça, mas apenas mera conseqüência lógica do respeito a regra. Seria então, a incidência de determinada regra de forma igualitária aos membros de uma categoria, um silogismo imperativo266, pelo qual o silogismo maior é a regra de justiça e o menor a qualificação do ser, ou seja, aquilo que será considerado para determinar sua inserção no grupo. Por esses elementos, pode-se entender a justiça como fruto da razão, já que não é concebida sem regras e sua aplicação: supõe uma reflexão, um discernimento, um juízo, um raciocínio. Nesse sentido, a justiça é uma virtude racional, a manifestação da razão na ação. Note-se, a esse respeito, que a aplicação da justiça formal impõe, no domínio prático, trâmites racionais iguais aos requeridos pela aplicação de uma lei, no domínio teórico.267 A relação entre e justiça e igualdade também é explorada por Kelsen na mesma direção de afirmar que a igualdade nada mais é do que decorrência do caráter geral da norma que prescreva que determinados indivíduos em determinadas situações devem ser tratados de 264 PERELMAN, op. cit., p. 37. 265 Ibid., p. 41. 266Chaïm Perelman estabelece a diferença entre silogismo teórico e silogismo imperativo, pela qual, no primeiro, a premissa maior e a conclusão não enunciam o que deve ser (imperativo) mas o que é. 107 determinada maneira. Acrescenta o autor, nesta correlação, que quando a regra de que os iguais devem ser tratados de forma igual é apresentada como uma aplicação do princípio da igualdade, a “igualdade” de que se trata é aquela que se designa “igualdade perante a lei”, para distingui-la da “igualdade na lei”268. A igualdade perante a lei pode existir quando não existir nenhuma igualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescrever nenhum tratamento igualitário. A igualdade perante a lei não seria, portanto, igualdade, mas conformidade com a norma. Considerando que justo formal seria o ato praticado de acordo com uma regra, seja ela qual for, é possível que do ponto de vista material se possa constatar injustiças, desde que a arbitrariedade seja vislumbrada na proposição da referida regra. Arbitrária é a regra que não for passível de justificação e afastar a arbitrariedade se relaciona com a escolha de seu conteúdo, notadamente com a forma como vai ser escolhido. Fechando o intróito a respeito da justiça, o autor distingue seus três elementos: o valor que a fundamenta, a regra que a enuncia e o ato que a realiza. Os dois últimos podem ser submetidos às exigências racionais, porém, a justiça, por estar fundamentada em valores escolhidos arbitrariamente, nunca será perfeita, salvo se existisse apenas um valor aclamado por todos como o escopo primordial. E conclui: Um apaixonado por justiça não se contentará em aplicar estrita e cegamente as regras que decorrem de seu sistema normativo, sempre pensará no fundamento arbitrário de seu sistema que não é, e não pode ser, um sistema perfeito. 269 A identificação entre os conceitos de igualdade e justiça acarreta a relativização da primeira, uma vez que a justaposição está atrelada à noção de igualdade de tratamento, sendo que, em determinados casos, é reconhecida a existência de algumas razões que justificam um tratamento desigual. 267PERELMAN, op. cit., p. 47. 268KELSEN, op. cit., p. 59-60. 269PERELMAN, op. cit., p. 60. 108 O modo como desigualdades são justificadas demonstra, no passar dos tempos, a mudança de mentalidade de uma sociedade. Tal justificação passa pela escolha das situações que devem ser tratadas de forma especial, sendo necessário para a manutenção da paz social que a lei determine as diferenças e estabeleça quais as distinções a serem consideradas. Tal previsão, ainda, tem que ser feita de forma lógica para com a meta perseguida pela sociedade, racional em relação ao interesse geral, até porque, por exemplo: “o critério do montante dos rendimentos pode determinar a taxa de imposto, mas não acessibilidade aos empregos públicos”270. Ao passo que durante a Revolução Francesa a igualdade levantada como estandarte significava a abolição de privilégios, atualmente vem sendo empregada mais no sentido de igualdade de oportunidades, concedendo privilégios aos que estejam numa situação de inferioridade. 3.1.3 Atualidade da aplicação da justiça distributiva – justiça social, fiscal e tributária A clareza dos conceitos elaborados por Aristóteles, sua correlação com igualdade e afirmação da necessidade de adoção de critérios diferenciadores para aplicação da justiça distributiva reflete na continuidade história desta concepção e explica a reverência neste trabalho. Utilizando Aristóteles como fio condutor de suas reflexões, Azevedo faz questão de frisar a atualidade dos conceitos daquele filósofo e a importância de seu legado na apreciação de grande parte dos problemas hoje enfrentados porque “relacionada com a justiça ou 270PERELMAN, op. cit., p. 232. 109 injustiça das próprias leis que criam ou consagram certas formas de distribuição das rendas, riquezas, honras, posições e outros bens, entre os membros da comunidade.”271 Eminentemente debruçado sobre as questões sociais, Azevedo aponta a desigualdade na distribuição de renda como uma das causas mais próximas da miséria e arremata: Por estas razões é conveniente que se coloquem, se pensem, se discutam, todos os dados contidos na fórmula aristotélica da justiça distributiva, pois de toda evidência, não se exaurem eles em um impasse ou artifício matemático. Há muito mais do que isto nesta noção, assim explicando a sua permanência.272 A problemática da justiça distributiva é examinada por Torres justamente no viés da desigualdade social, verificando que a situação é de ‘tal forma chocante que o anseio de redistribuição de bens se coloca como objetivo básico de partidos políticos e tema central das discussões”273. O autor se questiona no sentido de tentar definir ou pelo menos achar um caminho para descobrir como efetivamente distribuir a renda de forma justa e qual seria o papel do Estado nessa realização. Especificamente relacionada à distribuição de renda e seus problemas, a aplicação da justiça distributiva na História mais recente atravessou três estágios não estanques: a teoria da justiça social e a contra-argumentação pela impossibilidade de uma teoria da justiça, a teoria da justiça política e, na sua dimensão mais atual, a teoria da justiça fiscal274. A teoria da justiça social se desenvolveu a partir do século XIX, especialmente em virtude dos conflitos sociais decorrentes da divisão entre capital e trabalho e teve como base a concepção de Aristóteles (justiça legal e meio termo proporcional) e de São Tomás de Aquino (justiça geral). Pode, entretanto, ser estudada segundo numerosos autores e correntes, que, 271AZEVEDO, Plauto Faraco de. Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto Alegre: Fabris, 1983. p.7. 272Ibid., p. 37. 273TORRES, Ricardo Lobo. Justiça distributiva: social, política e fiscal. Revista de direito tributário. São Paulo, v. 5, n.70. p. 27-39, out./dez. 1994. Cf., p. 27. 274Ibid., p. 28. 110 pela brevidade do trabalho não poderão ser aqui analisados a fundo, sendo necessário acolher uma linha evolutiva. Torres fornece a direção apontando inicialmente para a análise do conceito de justiça social. O termo “social”, tal como “justiça”, pode ser definido de diversas formas, assumindo contornos diferenciados de acordo com a junção pretendida. A justaposição de “justiça” com “social” relaciona-se com um conteúdo voltado à distribuição de renda, o qual bem se amolda ao fim aqui vislumbrado. As possibilidades de concretização da justiça social são sintetizadas pelo autor, a seguir: Seja a primeira a de que a redistribuição de rendas seria obtida pelo processo social espontâneo, baseado no desenvolvimento econômico e na economia social de mercado. A segunda consiste na transferência de recursos da classe rica para a pobre, de modo que a totalidade dos indivíduos que compõem a camada mais baixa da sociedade venha a enriquecer. A última é a de que certas instituições sociais (Igreja, sindicatos, empresas, entidades nãogovernamentais) participam do processo de redistribuição de rendas.275 A idéia de que as divisões de riquezas entre as classes poderiam ocorrer de forma natural, no sentido de ser desnecessário qualquer mecanismo de indução, afundou vertiginosamente, sucumbindo frente à generalidade de suas proposições. A seguir, a impotência da justiça social na sua concepção de ausência de participação governamental na redistribuição dos bens levou a defesa da tese pessimista de que seria impossível estabelecer uma noção de justiça.276 Advinda da teoria da justiça social, a teoria da justiça política desenvolveu-se fundada na redistribuição de rendas efetuada pelo Estado através de suas instituições políticas e pela “concretização dos princípios constitucionais ligados á idéia de justiça”277.Como expoente 275TORRES, op. cit., p. 29. 276 Dentre os autores que sustentaram esse posicionamento Torres destaca Nozick, Luhman e Habermas, os quais, ora com fulcro na idéia absoluta de propriedade ora afastando o direito da justiça, recusaram a perseguição de uma teoria, por entender irrealizável tal desiderato. 277TORRES, op. cit., p. 31. 111 desta perspectiva de justiça destacou-se Rawls278, o qual, para apresentar suas idéias, supõe um contrato concluído entre sócios com o objetivo de tornar a sociedade mais justa. Esses sócios são pessoas tomadas no sentido kantiano de sujeito moral, livre, responsável e autônomo. Introduz a noção de cidadão (pessoas participantes de uma instituição ou afetadas por ela) sendo ele que deverá usufruir uma liberdade igual numa sociedade democrática. As noções de justiça fiscal ganharam corpo a partir dos trabalhos desse filósofo americano, dando-as contornos mais definidos como uma das verificações mais plausíveis da justiça política, especialmente a partir das obras de Tipke e Buchanan. Sobre essa concepção, Torres expressamente manifesta que “a justiça fiscal é uma das possibilidades mais concretas da justiça política. Sendo a justiça que se atualiza por intermédio do Fisco, tem a sua problemática indissoluvelmente ligada a das instituições políticas e a da Constituição”279 e adianta uma discussão que será travada no decorrer deste capítulo, afirmando que a questão da justiça está intimamente atrelada à noção de mínimo vital. A compreensão da justiça fiscal está, no seu entender, imbricada com a teoria da justiça tributária, apreciação sobre o justo tributário e os princípios relacionados (capacidade contributiva, princípio da equivalência, solidariedade, distribuição de renda), com a teoria da justiça orçamentária (princípios da redistribuição de rendas e gratuidade) e com a teoria geral da justiça fiscal (preocupada com os fundamentos gerais da justiça distributiva e comutativa na seara de atuação do fisco)280. É necessário enfrentar neste ponto a dificuldade de definir a qualificação a ser agregada ao termo “justiça”281, em sua versão distributiva, mediante a escolha necessária de 278RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Brasília: EUB, 1980. 279TORRES, op. cit., p. 34. 280Ibid., p. 36-37. 281Ricardo Lobo Torres optou, como visto, pela expressão “justiça fiscal”. 112 critérios para sua consecução, de maneira a melhor exprimir os objetivos a serem alcançados. As variantes podem ser sintetizadas em justiça social, tributária ou fiscal. Conforme a linha evolutiva acima traçada, o conceito de justiça social seria o primeiro esforço teórico em face das desigualdades marcantes enfrentadas nos Estados a partido do século XIX, constituindo-se no marco precursor, seguido pela justiça política, que, como demonstrado, pressupõe atuação diretiva para concretude. Daí se desenrolaram as concepções de justiça tributária e justiça fiscal, dentre inúmeras outras possibilidades desenvolvidas e não ignoradas. Assim, por abarcar as duas idéias em seu bojo, ou melhor, pela pluralidade de aplicações, deixa-se de lado a expressão justiça social, o que não corresponde a desprezar a força de seu significado. Ao contrário, simplesmente faz-se por considerar que as demais pressupõem a problemática social, como parte da noção maior que o são. A denominação justiça fiscal, por sua vez, evidencia o Fisco, numa acepção restritiva que poderia levar a falsa idéia de que as questões de justiça estão voltadas somente para sua atuação de cobrança de tributos. Acolhe-se, pois, notadamente pela inafastabilidade de assim proceder, a expressão justiça tributária, à qual se procura preencher com um significado um pouco mais amplo que a última (fiscal) e mais limitado que a primeira (social), no sentido de apreciar a aplicação da justiça, seus limites, possibilidades e critérios, no plano Constitucional de limitações ao exercício da competência tributária e infra-constitucional de instituição. Superada essa questão terminológica, torna-se relevante definir o critério hábil a concretizar a aplicação da justiça tributária, sem esquecer da fundamental noção de distributividade alhures discorrida, uma vez que conforme a concepção aristotélica, a justiça distributiva se refere tanto à alocação de bens quanto de encargos, dentre os quais pode-se incluir os tributos. 113 Dentre os possíveis elementos diferenciadores hábeis a preencher o conteúdo da igualdade e definir a inclusão de determinada pessoa ou grupo na chamada categoria essencial, de forma a entender a tributação justa como aquela capaz de funcionar como instrumento de distribuição de renda, o mais adequado é, sem dúvida, o princípio da capacidade contributiva. 3.2 ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Apresentadas as noções de justiça que mais se acomodam ao presente trabalho, passase a apreciação do conceito e conteúdo do princípio da capacidade contributiva. 3.2.1 Conceito e conteúdo do princípio da capacidade contributiva Do mesmo modo que a justiça sempre esteve ligada a idéia de igualdade, na esfera do direito tributário, a justificação para um tratamento diferenciado entre contribuintes perpassa pela utilização do princípio da capacidade contributiva, como elemento de distinção, não violando o princípio da igualdade, uma vez que somente é vedado o tratamento distinto injustificado. A diferenciação entre os desiguais para ser lídima tem que estar amparada em um fundamento, uma justificativa capaz de demonstrar que a diferença está sendo estabelecida para um fim maior, que é a realização da justiça. O essencial é que duas pessoas que se encontrem na mesma situação sejam igualmente tributadas, atuando o principio da igualdade de dois modos: primeiro exigindo a generalidade das normas (como forma de abolir exceções e privilégios injustificados) e segundo, proibindo a adoção de critérios arbitrários (sem justificação). Acerca da justificação para o tratamento diferenciado, Ávila sustenta que “O fundamento normativo decore normalmente de um interesse público. O critério de diferenciação deve possuir um fundamento constitucional. Ele deve ser adequado, impessoal e 114 objetivo”282. Para concretização do princípio da igualdade é necessário o acolhimento de parâmetros reais, objetivos e pertinentes, sendo que, escolhido o critério, deverá ser aplicado a todos os sujeitos envolvidos283. Constata-se, portanto, que a tendência de tributar igualmente aqueles que se encontram em posição igual se traduz em uma fórmula vazia sob o ponto de vista do respeito aos princípios constitucionais, mesmo que eleito o critério de diferenciação, se não fundada nos pontos de vista relevantes, de modo a efetivamente afirmar estarem os contribuintes na mesma situação, o que se pode perceber mediante a comparação dos elementos de distinção com o disposto na Constituição284. Ávila completa: A igualdade de tratamento exige igual tratamento em aspectos relevantes. Decisivo é, portanto, o critério que determina quais situações devem ter a mesma e quais devem ter outra conseqüência jurídica. O critério de justiça, no Direito Tributário, deve ser a capacidade contributiva (art. 145, parágrafo 1º). Qualquer afastamento desse direito preliminar de igual tratamento (art. 5º) deve ser fundamentado, caso contrário, o próprio significado fundamental do princípio da capacidade contributiva seria afastado (arts. 1º e 5º).285 Retomando o que foi dito no capítulo anterior, não se pode esquecer que a atividade compulsória do Estado de exigir do contribuinte o pagamento do tributo deve necessariamente ser limitada. Esses limites são extraídos do próprio ordenamento jurídico, notadamente das limitações constitucionais ao exercício da competência tributária. Dentre essas limitações encontram-se tanto os princípios quanto as imunidades, que se constituem em elementos diferenciadores possíveis para a concretização da igualdade e aplicação da justiça tributária. Atém-se neste estudo à análise da exigência do tributo frente ao princípio da capacidade contributiva, com o escopo de alcançar a justiça na tributação, de forma que ela possa, de um lado, atender aos fins de manutenção do Estado (proteção, 282ÁVILA, op. cit., p. 339. 283Ibid., p. 340. 284Devem ser apreciados neste contexto tantos os conceitos positivados quanto às decisões valorativas da Constituição, como por exemplo: a proteção à família, ao casamento, busca da solidariedade social, dentre muitos outros. 285ÁVILA, op. cit., p. 344. 115 segurança, saúde, etc), e de outro à distribuição de renda e aos direitos dos contribuintes, que, num aspecto lato, também podem ser considerados escopos de um Estado constitucionalmente organizado e determinado. Com muita precisão, Pereira afirma que “a capacidade contributiva é relacionada com a aptidão para realizar o interesse público, traduzido na Constituição” sendo que isto também integra as escolhas que devem ser necessariamente feitas na procura pela justiça “em alguns casos o interesse público é mais bem atingido pela ausência de tributação (ou pela sua redução) que pela própria apropriação do Estado de parte da capacidade econômica privada” 286. Na Constituição da República Federativa do Brasil o principio da capacidade contributiva encontra-se estampado no art. 145, § 1º, nestes termos: §1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Segundo esse princípio, cada contribuinte deve ser tributado de acordo com a sua capacidade contributiva, ou seja, segundo sua possiblidade de realizar a contribuição. Dessa forma, cada qual arca com um ônus tributário mais elevado quanto maior for a sua capacidade de suportar este ônus287. Conforme Torres, esta espécie normativa consiste em legitimar a tributação e graduála de acordo com a riqueza, de modo que os ricos paguem mais e os pobres, menos.288 286PEREIRA, César Guimarães. Elisão tributária e função administrativa. São Paulo: Dialética, 2001. 287CONTI, José Maurício. Princípios tributários da capacidade contributiva e da progressividade. São Paulo: Dialética, 1997. p. 29. 288TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. 116 Machado atesta a impossibilidade de tratar igualmente pessoas desiguais. E, admitindo a dificuldade na escolha do critério a ser utilizado para discriminação ou diferenciação, o legislador elege, no direito tributário, a capacidade econômica.289 Faz-se muita confusão acerca das expressões capacidade econômica e capacidade contributiva, sendo que diversos autores empregam-nas como se fossem sinônimas. Ives Gandra Martins é categórico ao traçar as diferenças. Na sua perspectiva, a capacidade contributiva pode ser interpretada como aquela derivada de uma relação jurídica entre o fisco e o contribuinte, em que o primeiro detém um poder sobre o segundo. Assim, tem capacidade contributiva aquele contribuinte que está juridicamente obrigado a cumprir determinada prestação de natureza tributária para com o poder tributante. A capacidade econômica, por sua vez, é representada pela capacidade que o contribuinte possui de suportar o ônus tributário em razão de seus rendimentos. Cita, à guisa de exemplificação, o caso de um cidadão que usufrui renda e tem capacidade contributiva perante o país em que recebeu. Já um cidadão rico, de passagem pelo País, tem capacidade econômica, mas não tem capacidade contributiva, pois tem rendimentos suficientes para suportar tributos, mas não há nenhuma relação jurídica que o vincule ao fisco do Estado em que transita. Assim, não tem capacidade contributiva neste país 290. Apesar de o Texto Constitucional adotar a expressão capacidade econômica, a mais utilizada pelos autores e que ficou consagrada foi capacidade contributiva. Torres afirma que a igualdade atinge maior grau de concretude através dos subprincípios constitucionais vinculados ao princípio da capacidade contributiva. A progressividade significa que o tributo será graduado de forma a atingir com alíquotas maiores as bases tributárias mais elevadas. A proporcionalidade dirige a imposição tributária 289MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 290MARTINS, Ives G. S. Capacidade econômica e capacidade contributiva. Caderno de Pesquisas Tributárias, São Paulo, n.14, p. 33 e segs. 1989. 117 proporcional à riqueza e se aplica de preferência aos impostos sobre o patrimônio. Pela personalização, entende-se que os impostos devem incidir sempre que possível de acordo com a situação pessoal do contribuinte. Por fim, a seletividade, que disciplina que o tributo deve incidir com alíquotas mais elevadas na razão inversa da utilidade social do bem ou da sua necessidade para o consumo popular291. 3.2.2 Mensuração da Capacidade Contributiva Um dos problemas centrais no processo de tributação é a medição da capacidade contributiva. Becker assinala que cada vez mais se induz o legislador a escolher como elementos integrantes da hipótese de incidência signos presuntivos de riqueza292. Basicamente pode-se considerar a existência de três critérios para mensurar a capacidade contributiva: renda auferida, consumo e patrimônio. Os adeptos do critério referente ao consumo aduzem que o mais importante é analisar os gastos praticados pelo indivíduo a fim de buscar a medida da tributação. Outros afirmam que o critério mais seguro seria a riqueza (patrimônio, capital, renda acumulada). Tem prevalecido a opinião de que o principio da capacidade contributiva previsto na Constituição se refere ao poder econômico do contribuinte. Desta feita, tem-se acatado a renda como a melhor forma de expressão indicativa daquela capacidade. Em outras palavras, segundo o aspecto econômico, a renda, genericamente considerada, corresponderia, enquanto conjunto de fatos exteriorizadores de riqueza, à forma ideal de indicar a capacidade contributiva293. 291TORRES, op. cit., p. 183. 292BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 142. 293ZILVETI, Fernando Aurélio. Capacidade contributiva e mínimo existencial. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coord.). Direito Tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998. 118 Justifica-se a adoção pelo fato de sobre a renda ser possível incidir uma tributação direta, de modo a se estabelecer alíquotas diferenciadas, ao passo que através do consumo, a ser atingido por tributo indireto, tornar-se-ia mais difícil estabelecer uma diferenciação segundo a capacidade contributiva do contribuinte. 3.2.3 Mínimo Existencial ou Mínimo Vital No âmbito da filosofia, Kolm afirma que a justiça é a resposta para o conflito estabelecido entre interesses diferentes, embates estes que nas sociedades atuais estão muito relacionados com as desigualdades sociais, sendo condição inarredável para construção e permanência de uma teoria da justiça a preocupação e a garantia das necessidades humanas mais elementares, de maneira que: As necessidades básicas incluem as necessidades culturais essenciais, indispensáveis á existência social, que são definidas pelo próprio aspecto da cultura que as cria. Essas liberdades existenciais básicas e a satisfação das necessidades não são apenas meios, mas também condições da dignidade.294 No exame da tributação realizada com os olhos voltados para a justiça, alicerçada no conteúdo do princípio constitucional da capacidade contributiva, não se pode deixar de ter em conta a inconstitucionalidade da tributação exercida indistintamente sobre determinada manifestação de capacidade econômica de um contribuinte, atingindo-o naqueles recursos que destinaria as suas necessidades básicas, imprescindíveis à garantia de sua sobrevivência. Sobre o assunto, anota Oliveira: Ser justo, em suma, é tratar a todos com Igualdade. Entendemos que no Direito Tributário a Igualdade se realiza através do princípio da capacidade contributiva, porque somente garantida a satisfação das necessidades mínimas, comuns a todos, é que, ao depois, se poderá tratar desigualmente os desiguais, discriminado-os licitamente com base nas respectivas riquezas diversas.295 294KOLM, Serge-Christophe. Teorias modernas da justiça. Traduzido por Jefferson Camargo e Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 14. 295OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade contributiva: conteúdo e eficácia do princípio. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 35. 119 A questão do mínimo existencial é relacionada por Torres com a problemática da liberdade, de modo que: O cidadão tem o direito às prestações positivas do Estado para que possa satisfazer as suas necessidades mínimas, abaixo das quais deixa de ter uma vida humana digna. Esse direito às condições iniciais da liberdade, portanto, participa do tema dos direitos fundamentais ou dos direitos humanos, mas está em íntimo contato com o da justiça fiscal, embora com ele não se confunda, tendo em vista a complicação desses valores.296 Conti afirma que os recursos destinados a atender as finalidades básicas da existência humana digna não revelam capacidade contributiva, mas somente capacidade econômica mínima. A defesa da não tributação do mínimo vital é algo que pode ser considerado como unânime entre os doutrinadores, sendo uma idéia antiga em termos de política fiscal justa.297 A idéia é que, levando-se em consideração as necessidades das pessoas dentro do contexto social, cultural e econômico em que vivem, sejam reconhecidos como não tributáveis os fatos que, embora exteriorizem alguma capacidade econômica, não indicam capacidade contributiva. Em termos práticos, pode-se falar do respeito ao mínimo vital quando se trata de imposto de renda, no qual a tributação só ocorre a partir de um determinado montante. Há também isenções, em vários tipos de impostos indiretos, de produtos que são considerados de consumo indispensável. Concatenando a progressividade que necessariamente deve orientar o imposto sobre a renda com a aplicação do princípio da capacidade contributiva em momento anterior à exigência do tributo (capacidade negativa), ou seja, com a noção de mínimo existencial, infere Ávila: Dos deveres de proteção da dignidade, da família e da educação, pode-se inferir a obrigatoriedade de dedução dos gastos necessários à realização mínima desses bens e valores. O postulado da coerência o exige. Somente aquela parte dos rendimentos que esteja disponível para o sujeito passivo é que pode ser tributada. Despesas inevitáveis, que sejam necessárias para a manutenção da dignidade humana e da família, devem ficar fora do âmbito da tributação. Do contrário, esse imposto não 296TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. São Paulo, v. 32, n. 177, 1989. 297BECKER, op. cit., p. 53. 120 mais iria atingir a renda, mas qualquer receita. O imposto sobre a renda é um imposto sobre a renda líquida pessoal, isto é, sobre a renda economicamente disponível.298 Ligado a esta garantia encontra-se a proibição de utilização de tributo com efeito de confisco. Torres traça um paralelo entre capacidade contributiva, mínimo existencial e proibição de confisco. A imunidade do mínimo existencial se situa aquém da capacidade contributiva da mesma forma que a proibição de confisco veda a incidência além da capacidade de pagar. Assim, a capacidade contributiva começa além do mínimo à existência humana digna e termina aquém do limite destruidor da propriedade. Esse limite superior estabelece que a tributação, em cotejo com os princípios e garantias constitucionais (direito ao trabalho e à livre iniciativa, proteção à propriedade), “não poderá inviabilizar ou até mesmo inibir o exercício de atividade profissional ou empresarial lícita nem retirar do contribuinte a parcela substancial da propriedade”299. Pode-se concluir que a renda, apesar de ser considerada a melhor medida da capacidade contributiva, deve ser definida positiva e negativamente, de modo a se declarar não tributável a parte dos rendimentos dos contribuintes destinada a manutenção das condições dignas de sobrevivência300, estabelecer a que é capaz de ser apropriada pelo Estado a fim de cumprir seus fins e livrar a porção que superaria as possibilidades de sacrifício. 3.3. EFICÁCIA DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA O apanhamento fiel das nuances do princípio da capacidade contributiva perpassa necessariamente pelo esquadrinhamento da redação do art. 145 da CRFB. 298ÁVILA, op. cit., p. 365. 299OLIVEIRA, op. cit., p. 13. 300Tratando-se singularmente do imposto de renda, as deduções se apresentam como instrumento principal a se reduzir ao tributável somente aquilo que efetivamente se constitui em renda, no sentido explicitado. 121 3.3.1 Interpretação do “sempre que possível (...)” A redação do artigo 145 da CRFB é muito combatida pela doutrina, notadamente pelas interpretações e abrangências possíveis que se pode fornecer à expressão “caráter pessoal” e, principalmente, a “sempre que possível”. Muito se discute acerca da locução sempre que possível. Questiona-se quais seriam exatamente as situações que o legislador constituinte visou atingir e quais ele procurou dispensar da observância do principio. Do mesmo modo, o caráter pessoal refere-se à aptidão do imposto de poder se relacionar com a pessoa do sujeito passivo da obrigação, considerando-se a sua condição econômica especial e levando-se em conta os indícios que melhor valorem esta situação. A expressão como está posta no artigo se relaciona, aparentemente, a duas situações a serem observadas: o caráter pessoal e a capacidade econômica do contribuinte. Assim, sempre que possível os impostos terão caráter pessoal e sempre que possível serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Pode-se concluir, a princípio, que a capacidade contributiva não seria aplicável em todos os casos. Este a primeira vista parece ser o significado da norma, mas não é a sua adequada compreensão. Vários autores afirmam ser a expressão “sempre que possível” aplicável somente ao caráter pessoal e não à capacidade contributiva. Nessa esteira, destaca-se a posição Machado “A nosso ver, o sempre que possível, do § 1º do art. 145, diz respeito apenas ao caráter pessoal dos tributos, pois na verdade nem sempre é tecnicamente possível um tributo com caráter pessoal”301. 301MACHADO, op. cit., p. 46. 122 Jardim, sobre o assunto, afirma: É bem de ver que a cláusula “sempre que possível” não traduz mera faculdade à disposição do legislador infraconstitucional, mas imperativo no sentido de privilegiar os impostos pessoais, prioritariamente, e, secundariamente, criar também impostos de natureza impessoal, a teor dos incidentes sobre a produção e a circulação, dentre outros. (...) Entendemos, realmente, que esse primado constitucional é aplicável a todos os tributos, pois em nenhum momento o legislador poderá fazer tábula rasa da capacidade contributiva. Ademais, assinalamos, insistindo, que a capacidade contributiva de também permear todos os tributos, pois, em se tratando de taxas, contribuições e empréstimos compulsórios, a hipótese de incidência não é a atividade estatal em si, mas a conduta particular a ela correspondente. 302 Conti, discorrendo sobre o tema, comenta que é certo que nem todos os impostos têm caráter pessoal, haja vista a existência de vários em que as características do contribuinte não são previamente conhecidas, de modo que não se pode avaliar suas exatas condições econômicas303. Porém, todos os impostos, ainda que não permitam uma direta aferição da capacidade contributiva, podem se sujeitar ao princípio. Mesmo a imposição de tributos sem caráter pessoal, como aqueles incidentes sobre o consumo, é dotada de mecanismos (seletividade) que tornam possível gravar mais pesadamente os indivíduos que exteriorizam uma capacidade contributiva mais elevada. É necessário frisar que a doutrina majoritária afirma que os impostos com caráter pessoal tendem a atingir melhor os objetivos de justiça, pelo fato de mais explicitamente se adequarem ao princípio da capacidade contributiva, devendo, por esse motivo, ser preferidos em relação aos impostos de natureza real. A extrafiscalidade é utilizada como argumento para defender que a colocação da expressão sempre que possível no Texto Constitucional teria visado apenas permitir exceções, em que o objetivo principal não é a arrecadação, mas o direcionamento das atividades dos 302JARDIM, op. cit., p. 181. 303CONTI, op. cit., p. 48. 123 agentes econômicos304. Torres entende que extrafiscalidade consiste na utilização do tributo para obter certos efeitos na área econômica e social, que transcenderiam a mera finalidade de fornecer recursos para atender às necessidades do Tesouro. A política extrafiscal justificaria a elevação das alíquotas e o tributo excessivo com o fito de coibir certas atividades consideradas nocivas `a saúde, ao desenvolvimento econômico etc. Com tal opinião não comunga Carrazza, destacando que o ICMS e o IPI devem necessariamente ser instrumentos de extrafiscalidade, porém, as normas que determinam que tais impostos sejam seletivos não dão margem a faculdade do legislador, ao contrário, impõem um dever. Tal dever, assim, deve ser cumprido no sentido de coibir certas atividades e prestigiar outras, bem como aumentar ou diminuir a carga em face da essencialidade do produto. A seletividade, neste caso, é inegavelmente realizada como conseqüência do princípio da capacidade contributiva305. Na verdade, as tributações extrafiscais somente são justificadas se incidirem sobre uma real existência de renda, servindo “como instrumento de efetivação da progressividade do sistema tributário”306 de maneira a realizar o princípio da capacidade contributiva. E ainda, o fim indiscutivelmente distributivo deste tipo de tributação coaduna-se com o conteúdo do princípio da capacidade contributiva e, no mesmo plano, com a consecução da justiça. 3.3.2 Aplicação do princípio da capacidade contributiva Além das dúvidas geradas pela redação do art. 145 da CRFB em relação aos termos acima referidos, é tortuosa na doutrina a questão da abrangência do princípio da capacidade contributiva. Em outras palavras, a definição das espécies de tributos que ele poderia atingir, uma vez que, apesar do Texto Constitucional se referir especificamente aos impostos, grande 304CONTI, op. cit., p. 48. 305CARRAZZA, op. cit., p. 86. 306OLIVEIRA, op. cit., p. 55. 124 parte dos autores dedicados ao tema aceita a possibilidade de se estender a aplicação às demais espécies tributárias. A limitação do princípio da capacidade unicamente aos impostos é justificada, notadamente em relação às taxas, uma vez que na cobrança destas não se leva em consideração o sujeito passivo, o que seria indispensável para graduação do tributo em face da capacidade contributiva do contribuinte. Essa é opinião de Machado: No Direito Brasileiro, o princípio da capacidade contributiva existe como princípio jurídico constitucional apenas para os imposto, e apenas em relação a estes, portanto, se impõe ao legislador, que o não observando produzirá lei inconstitucional. Em relação às taxas, como em relação a qualquer outro tributo que não se caracteriza como imposto, o legislador tem a liberdade de observar, ou não, o princípio em tela.307 Com muita força argumentativa, Conti opina pela aplicabilidade do princípio a todas as espécies tributárias, especialmente pelos limites a elas impostos, quais sejam: proibição do tributo como confisco e não-tributação do mínimo vital, observe-se: O princípio da capacidade contributiva é aplicável a todas as espécies tributárias. No tocante aos impostos, o princípio é aplicável em toda a sua extensão e efetividade. Já no caso dos tributos vinculados, é aplicável restritivamente, devendo ser respeitados apenas os limites que lhe dão os contornos inferior e superior, vedando a tributação do mínimo vital e a imposição tributária que tenha efeitos confiscatórios.308 O mesmo entendimento é manifestado por Oliveira assinalando que o princípio “incide genericamente sobre todas as exações tributárias”309. Reconhece, contudo, que apesar da capacidade contributiva ter aplicação mais ampla no que se refere aos impostos, não se pode negar sua eficácia sobre os demais tributos pois em “todas elas trata-se de retirar recursos econômicos dos particulares para transferi-los ao setor público”310. Do esquadrinhamento dos impostos em diretos e indiretos surge uma nova controvérsia. Diretos são aqueles cujo ônus tributário recai sobre a pessoa do contribuinte, não 307MACHADO, Hugo de Brito. Princípios Constitucionais tributários. Caderno de Pesquisas Tributárias, São Paulo, n. 18, p. 54. 1993. 308CONTI, op. cit., p. 65. 309OLIVEIRA, op. cit., p. 47. 310Ibid., p.50-51. 125 repousando no que tange a estes qualquer dúvida quanto a total aplicabilidade. Já os indiretos são aqueles que, embora a obrigação recaia sobre determinada pessoa (contribuinte), o ônus é efetivamente suportado por outra (consumidor), como exemplo o ICMS. Nessa modalidade de impostos, as condições pessoais do sujeito passivo da obrigação tributária não são sempre identificáveis, sendo esta a principal razão apontada por alguns autores para a impossibilidade de aplicação do princípio a estes impostos. Conti se posiciona no sentido da ampla possibilidade de aplicação do princípio da capacidade contributiva, notadamente em função dos mesmos argumentos acima destacados. Explica ele que nos casos em que se torna difícil mediar a capacidade contributiva pela renda, usa-se o consumo, ao qual, aplicando-se determinados critérios (sub-princípios), como a seletividade (graduação das alíquotas em face da essencialidade do produto), tornar-se-ia perfeitamente possível presumir a capacidade contributiva. Desta feita, a efetividade do princípio da capacidade contributiva está relacionada tanto com a fiscalidade como com a extrafiscalidade desempenhada pelo tributo. Pela força normativa delineada na primeira parte deste estudo, os princípios não podem ser encarados como diretrizes programáticas, ou seja, como elementos que teriam o fim de simplesmente inspirar a aplicação das normas. Os princípios, notadamente pela argumentação de Alexy, integram a categoria das normas jurídicas juntamente com as regras. Contudo, sua aplicabilidade ganha realce em face do alto grau de generalidade por eles carregados, bem como da qualidade de seu conteúdo. Em caso de conflito entre uma regra específica e um princípio, este deve prevalecer, não podendo ser afastado ou considerado inválido pela efetivação de uma regra, até mesmo pela posição hierárquica por eles ocupada. Ademais, mesmo quando o ponto de análise não é o conflito, e sim a influência direta do princípio sobre as demais normas, não se pode negar sua força vinculativa sobre todo o ordenamento. 126 Até porque, conforme esclarece Oliveira: Quer se pense no princípio como pressuposto da tributação quer enquanto critério de graduação do tributo, não se poderá conceber um sistema tributário apenas “parcialmente” adequado á capacidade contributiva, ou seja, como somente certo tipo de tributo respeitando a Ordem Constitucional e outros não. Se isto se admitir, além da pura e simples violação do princípio, ter-se-á de conviver com o desrespeito á isonomia, pois, o único critério de discrimen válido para igualar ou desigualar alguém no campo fiscal é o da riqueza, tendo em vista sua compatibilidade e estreita e intrínseca adequação ao substrato econômico da tributação.311 Como se pode perceber, a visão deste trabalho se coaduna com o pensamento dos autores que visam a maior aplicabilidade possível da capacidade contributiva. Conforme explicitado anteriormente, justamente por se tratar de um princípio ele pode ter sua aplicação alargada ou restringida em face do caso concreto apreciado. O que não se aceita como interpretação adequada é sua colocação à margem, especialmente pelos critérios e subprincípios a ele relacionados, capazes de lhe fornecer maior efetividade junto às espécies normativas. 3.4. O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE COMO INSTRUMENTO PARA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA TRIBUTÁRIA A normatividade dos princípios constitucionais exprime a força reguladora destas espécies normativas, no sentido de orientar a interpretação das demais normas e serem utilizados como razão de decidir quando seus conteúdos forem desrespeitados ou ignorados. A Constituição, além de garantir direitos traçou os contornos de restrição, que devem ser obedecidos por todos, inclusive pelo Estado. A limitação do poder não é o único, mas um dos conteúdos notáveis da Constituição. Estes limites podem ser considerados como garantia dos cidadãos. Na seara do direito tributário, as limitações ao exercício da competência tributária atuam justamente nesse fim, ou 311OLIVEIRA, op. cit., p. 47. 127 seja, fixar os parâmetros dentro dos quais a tributação312 é permitida, considerando, de um lado, às necessidades do Estado, e, de outro, os direitos dos contribuintes. Em outras palavras, uma das formas utilizadas pelo Estado para obtenção de recursos necessários à manutenção de suas atividades é a tributação. Por ela o Estado exige coercitivamente o pagamento de determinadas quantias pelos membros da sociedade com o objetivo de arrecadar o necessário para o financiamento de seus gastos. Não se pode deixar de lado tal necessidade, porém, do mesmo modo, a maneira pela qual o Estado vai exercer este poder se torna essencial, no sentido de determinar quais os critérios e princípios que deverão ser observados. Oliveira, numa análise “ético-jurídica” do tributo, assim o define: O tributo é o instituto engendrado pelo Homem que permite, num clima de liberdade, racionalizar juridicamente o esforço de cooperação individual em prol da comunidade: ao mesmo tempo em que representa uma contribuição, constitui uma obrigação, permitindo ao seu destinatário exigi-lo daqueles que, por uma razão ou por outra, deixem de prestá-lo ou o façam em desconformidade com a norma vigente. Tal é a concepção ético-jurídica do tributo, baseada no interesse social, resultante da possibilidade que tem o indivíduo, componente do grupo, de concorrer para o sustento deste; possibilidade que, se efetiva, transforma-se em dever, pois, do contrário, estar-se-ia determinando ou, pelo menos, ensejando o locupletamento de uns à custa de outros e a própria inviabilização da forma social.313 Como visto no decorrer deste capítulo, a igualdade sempre esteve relacionada à noção de justiça. Afirma-se que a garantia de igual tratamento àqueles que se encontrarem em igual situação se traduz num conceito pacificado de realização do justo. Nessa esteira, pontifica Oliveira que “Justiça e Igualdade, além de princípios jurídicos, são sentimentos próprios da condição humana, vivenciados concretamente, e que permeiam imperceptivelmente as constituições democráticas”314. 312Na linha do pensamento de Ubaldo Cesar Balthazar, entende-se por tributação não a exigência em si, mas a forma como serão cobrados os tributos. Cf.: BALTHAZAR, Ubaldo César; ALVES, André Zampieri. A resistência ao pagamento de tributos no Brasil. In: BALTHAZAR, Ubaldo César (org.). Estudos de direito tributário. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 313OLIVEIRA, op. cit., p. 57. 314Ibid., p. 11. 128 Não se nega o liame necessário entre os conceitos, entretanto, a igualdade se torna um conceito inócuo se não tiver seu conteúdo preenchido com um critério capaz que promover a diferenciação entre os desiguais. Ora, se o justo é tratar igualmente os que se encontram na mesma situação, para que a equação se vislumbre correta pressupõe-se um elemento de distinção, hábil a estabelecer seguramente quem são os iguais. Assim, se uma determinada norma deve atingir uma parcela de eleitos, estes escolhidos deverão integrar a categoria mediante a verificação de uma ou mais características em comum. Ocorre que a simples adoção de um critério para diferenciação de desiguais pode atender ao princípio da igualdade, mas não necessariamente irá acarretar a realização da justiça, considerando que “é possível obedecer formalmente um andamento mas contrariá-lo em substância. Cumpre verificar se foi atendida não apenas a letra do preceito isonômico, mas também seu espírito.”315 Ademais: não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável, que possui suficiência para discriminações legais. Não basta, pois, poder-se estabelecer racionalmente um nexo entre a diferença e um conseqüente tratamento diferençado. Requer-se, demais disso, que o vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente. (...) compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional.316 É necessário, então, investigar se a razão do tratamento diferenciado encontra-se ajustada com os valores aclamados pela Constituição. Por esse raciocínio, Ricardo Lobo Torres infere que a legitimidade da competência tributária se afirma pelo respeito aos direitos da liberdade e pela atualização dos princípios constitucionais vinculados à justiça e à igualdade. Entre igualdade e justiça o relacionamento é íntimo e profundo, mas não se confundem. 315 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 24. 316 Ibid., p. 41/42. 129 A legitimidade, no sentido de aceitação, também pode ser vislumbrada quando o traço distintivo for ao encontro dos valores prestigiados pelo sistema constitucional, sendo que “há espontâneo e até inconsciente reconhecimento da juridicidade de uma norma diferenciadora quando é perceptível a congruência entre a distinção de regimes estabelecidos e a desigualdade de situações correspondentes.”317 A congruência, ou relação lógica, entre os fatores analisados é afirmada num sentido amplo, de forma a retratar um valor absorvido pela ordem constitucional, sendo “a conexão lógica que determina a validade ou invalidade de uma regra perante a isonomia.”318 O conceito de igualdade, vazio que é, recebe o seu conteúdo dos princípios constitucionais vinculados à idéia de justiça. Para haver justiça tributária é necessário que haja igualdade entre iguais condições de capacidade contributiva. E aqui se apresenta o princípio da capacidade contributiva como elemento diferenciador para a realização da igualdade com vistas à construção da justiça em sua concepção distributiva, no presente trabalho reduzida à expressão justiça tributária. Tal compreensão decorre da constatação de que: se um tributo violar a capacidade contributiva estará desrespeitando a própria isonomia constitucional e a diretriz de Justiça de que se reveste o princípio. (...) É no ideal de justiça que se inspira o princípio da igualdade, cujo conteúdo, por sua vez, é integrado no Direito Tributário pelo princípio da capacidade contributiva, determinando-se desta forma, o profundo sentido ético-jurídico do tributo319. Por essas razões, é que se afirma que a capacidade contributiva corresponde ao mais importante princípio da justiça tributária em sua vertente distributiva320. Quer dizer, então, que a atividade tributária do Estado é justa desde que adequada à capacidade econômica da pessoa que deve suportá-lo. O referido princípio se destina imediatamente ao legislador 317 MELLO, op. cit., p. 37. 318 Ibid., p. 38. 319OLIVEIRA, op. cit., . p. 57. 320TORRES, Ricardo Lobo. Ética e justiça tributária. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coord.). Direito Tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998. 130 ordinário, sendo que é ele que deve imprimir aos tributos criados uma graduação no sentido da capacidade econômica dos contribuintes. Desta feita, quando da incidência dos tributos devem ser descritos fatos que bem alcancem a possibilidade financeira de arcar com os valores. Além da possibilidade financeira para pagamento dos tributos, deve-se atentar para a função específica desempenhada pelo princípio, qual seja, não somente graduar a incidência tributária a ponto de ser possível seu pagamento pelo contribuinte, mais especialmente, instrumentalizar a distribuição de renda, ponto basilar para alcance da justiça. A estrutura tributária deve se guiar no norte da justiça, sendo que tais critérios deverão ter por meta atingi-la, fazendo uma adequada distribuição do ônus tributário entre os indivíduos. Não é possível aceitar, pois, ser o tributo: uma mera entrega de dinheiro por força de um constrangimento de facto, mas uma prestação que se produz de iure, o tributo há de consistir em uma prestação justa; se o sistema tributário é uma obra de Direito, logo fundado na justiça, não basta que o tributo seja legal, necessário que ele seja justo. 321 Nesse aspecto, a intervenção estatal deve ser compatibilizada à luz da referida espécie normativa, de forma que o poder de exigir o tributo, ao determinar a quantia que deverá ser paga pelo contribuinte, deverá respeitar o limite natural da capacidade contributiva, sob pena de se utilizar o tributo como confisco, considerando que “pensar-se no tributo como um instituto aético, indiferente ao sentimento de Justiça, seria placitar-se a extorsão estatal, instituindo-se o arbítrio do Poder Público”322 No que se refere à aplicação do princípio em comento e a possibilidade do legislador estabelecer hipóteses discriminatórias, Machado comenta que a lei necessariamente institui alguma espécie de discriminação. O que se deve ter em conta são os critérios a serem 321OLIVEIRA, op. cit., p. 24-25. 322Ibid., p. 23. 131 seguidos para que se possa discriminar, ou melhor, cabe a lei disciplinar as desigualdades naturais existentes de forma a atender os fins da norma323. Neste ínterim é muito importante o entendimento acerca dos elementos utilizados pelo legislador para definir determinado tributo, inclusive como forma de exercício da cidadania, uma vez que apenas conhecendo-os é que se saberá se o mesmo atende ao referido princípio, restando “(...) agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício diferido ou com a inserção ao arrendamento do gravame imposto.”324 Como afirmado por Leonetti, o conceito de justiça social se refere tanto à distribuição do Bem Comum entre os grupos e os indivíduos, como à contribuição de cada um, indivíduo ou grupo, para com a coletividade. A divisão dos haveres, como dos deveres, deve ser feita segundo critérios prévia e democraticamente fixados, critérios estes que devem ser fixados na capacidade de cada um, não excluindo a participação do Estado, como meta para cumprimento da sua função social325. No seu entender, a justiça social seria praticada quando, simultaneamente “a) os ônus e os bônus do todo social são repartidos entre todos de acordo com os critérios prévia e democraticamente definidos e segundo a capacidade e necessidade de cada um; e b) é assegurado a cada indivíduo o mínimo indispensável a uma vida digna.” Reduzindo os pressupostos, a tributação pode ser considerada justa quando, como fundamento de distinção, aplicar-se o princípio da capacidade contributiva, de forma que cada um contribua para a sociedade na medida de suas possibilidades, bem como com a proteção do mínimo existencial. 323OLIVEIRA, op. cit., p. 45. 324MELLO, op. cit., p.38. 325LEONETTI, Carlos Araújo. O imposto de renda como instrumento de justiça social no Brasil. São Paulo: Manole, 2003, p. 173 e segs. 132 A repartição da carga tributária, segundo o princípio em destaque, é condição para que a tributação possa ser considerada justa, já que: as fundamentais exigências jurídicas em matéria tributária são de justiça na repartição da carga fiscal conforme o princípio da capacidade contributiva, positivado ou não, pois ele deriva do espírito vivificador da ordem jurídica, em última análise, do direito natural de que está imbuída a consciência humana.326 Pensar em justiça, além da faceta positiva da definição daquilo que é possível tributar, leva a garantia de condições de vida digna aos indivíduos, ou seja, da determinação negativa da tributação. Kolm assinala: De fato, o valor final da justiça e, por conseqüência, as reivindicações igualitárias específicas estão normalmente associados a bens que são condições de uma existência normal, como as necessidades no caso de total penúria, capital humano (educação e acesso à saúde, ou acesso a ambas), serviços públicos básicos de segurança e justiça, tipos de moradia e cultura, e assim por diante.327 É preciso destacar, ainda, que as necessidades básicas do ser humano devem ser atendidas. Em primeiro lugar, pela sua própria força, de seu trabalho e de sua família. Entretanto, se tais iniciativas fracassarem, além de ser vedada a tributação sobre a parte dos rendimentos destinada ao atendimento daquelas, deve o Estado agir, em nome da proteção à sociedade. O emprego do princípio da capacidade contributiva como forma de diferenciar as pessoas ou grupos e estabelecer quais serão os destinatários da norma, ou melhor, aqueles que deverão suportar determinada carga tributária, com base nas suas possibilidades, bem como dela dispensando aqueles que estão abaixo do nível mínimo de sobrevivência, não corresponde a privilegiar um em detrimento do outro. Até porque, os privilégios tributários legítimos (isenções, remissões, reduções de base de cálculo) subordinados à idéia de justiça, diferenciam-se dos odiosos328 porque estes para 326OLIVEIRA, op. cit., p. 23. 327KOLM, Serge-Christophe. Teorias modernas da justiça. Traduzido por Jefferson Camargo e Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 143. 328Expressão utilizada por Ricardo Lobo Torres. 133 seu deferimento não atentam para o princípio da razoabilidade e contrastam com o ideal de justiça, discriminando os iguais e igualando os desiguais. Nessas condições, a utilização do princípio da capacidade contributiva, como forma de aplicação concreta do princípio igualdade, apresenta-se como mecanismo eficiente para efetivação da justiça tributária, uma vez que para atingir seu fim, perpassa pela busca de uma melhor distribuição de renda, de proteção das condições de vida digna dos indivíduos e elevação dos valores encampados pela Constituição. 134 CONCLUSÃO Ao término deste estudo, reafirma-se seu propósito de contribuir para o entendimento acerca da adoção do princípio da capacidade contributiva como critério preenchedor mais adequado do postulado da igualdade na luta por uma tributação justa. As idéias nele explanadas e discutidas permitem formular, as seguintes conclusões: 1. O fato da Constituição encontrar-se condicionada pela realidade histórica e não poder ser concebida separadamente desta, não a reduz a mera expressão do real, sendo que graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social, assumindo uma força ativa, capaz de modificá-la. 2. No enfoque atual, derivado do conceito de “Constituição como Constituição escrita”, para que uma Constituição possa ser considerada verdadeira faz-se imprescindível que seu conteúdo encampe os princípios fundamentais progressivamente revelados pelo constitucionalismo. 3. A Constituição normativa pressupõe uma relação simbiótica entre o texto e um conteúdo específico, capaz de fundamentá-la. Para sua concretização, não é suficiente preparar um documento recheado de normas jurídicas formalmente elevadas a um grau superior, tais normas devem abarcar os valores mais caros da Nação (garantia de direitos e liberdades, separação de poderes, controle do poder, governo representativo). 4. Além de um conteúdo mínimo preestabelecido, para o desenvolvimento da força normativa da Constituição, é preciso atentar para a práxis. Assim, à medida que o cerne de uma Constituição corresponder à natureza singular do momento vivido pela Sociedade mais seguro será o aperfeiçoamento de sua força normativa. 5. A Constituição deve se mostrar hábil a adaptar-se às eventuais mudanças, o que se torna viável com a inclusão de princípios fundamentais, cujo conteúdo apresente condições de 135 ser desenvolvido, uma vez que a constitucionalização de interesses fugazes leva à necessidade de revisão constante, acarretando o enfraquecimento da força normativa. 6. A interpretação ocupa papel decisivo na consolidação e preservação da força normativa da Constituição e pode ser considerada adequada quando consegue concretizar de maneira ótima o sentido da proposição normativa dentro das condições reais de uma determinada situação. 7. Ao mesmo tempo que funcionam como vetores de interpretação, os princípios assumem a função de limite de atuação do jurista, estabelecendo balizas dentro das quais exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto. 8. A proclamação da Constituição como ordem normativa aberta formada por regras e princípios, no sentido de ser capaz de captar as mudanças da realidade que a circunda e dotada de caráter imperativo, decorre da superação da idéia de que os mandamentos constitucionais seriam normas programáticas, desprovidos de aplicabilidade imediata, bem como a da redução das funções dos princípios à interpretação e orientação das leis. 9. Ao Estado, em face de soberania ou poder de império exercido sobre as pessoas e coisas no seu território, é conferido o direito de exigir tributos. Essa prerrogativa, entretanto, não é absoluta, uma vez que deve ser fundamentada na lei e obediente às barreiras previstas na Constituição. 10. A atual rigidez do Sistema Tributário brasileiro é conseqüência de um processo de constitucionalização quase que absoluto da matéria tributária e pode ser compreendida mediante a apreciação do desenvolvimento histórico-constitucional das limitações constitucionais ao exercício da competência tributária, através das diversas fases de organização econômico-social que marcaram o poder político no País. 136 11. A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, proporcionou a consolidação de um verdadeiro estatuto do contribuinte, notadamente pela manutenção dos princípios historicamente consagrados e previsão de novos instrumentos de proteção aos contribuintes, dos quais pode-se destacar a estrita legalidade tributária, vedação de tratamento desigual aos que estejam em situações análogas (isonomia tributária), princípios da irretroatividade e anterioridade da lei tributária, proibição de utilizar tributo com efeito de confisco e de limitar o tráfego de pessoas ou bens pela instituição de tributos interestaduais e intermunicipais, imunidades, além de outros. 12. Frente a essa moldura protetiva erigida pelo Constituinte, a tributação deve incidir com escopo na igualdade e razoabilidade, sendo autorizado reconhecer que o tributo é um dever e um direito do cidadão, de maneira que os valores arrecadados com a tributação pertencem a Nação e não ao ente federativo. 13. A procura por uma tributação razoável e justa leva ao estudo das formas de Justiça capazes de bem cozer os pontos de contato, materializando-se na divisão proporcional. A justiça, desde os tempos de Aristóteles, é um conceito que vem assumindo diversos significados e feições, dependendo da ideologia social ou política que a inspira. A justiça distributiva relaciona-se com as partilhas efetivadas pelas normas, tanto com a distribuição de bens quanto de encargos. 14. Considerando que a justiça formal ou abstrata se constitui em tratar de forma igualitária os seres dotados de uma particularidade diferencial pré determinada, a idéia de justo acarreta no consenso sobre a aplicação de uma certa igualdade, sendo que para alcançar a igualdade proporcional na repartição de bens e deveres é inarredável a escolha de um critério para a distinção e o conjunto desses critérios traduz-se na fórmula de justiça concreta. 16. Apresentando-se como justo tratar igualmente os que se encontram na mesma situação, para que a equação se vislumbre correta pressupõe-se um elemento diferenciador, 137 hábil a estabelecer seguramente quem são os iguais. Assim, se uma determinada norma deve atingir uma parcela de eleitos, estes escolhidos, deverão integrar a categoria mediante a verificação de uma ou mais características em comum. 17. A maneira como as desigualdades são justificadas demonstra, no passar dos tempos, a mudança de mentalidade de uma sociedade. A justificação passa pela escolha das situações que devem ser tratadas de forma diferencial, sendo necessário para a manutenção da paz social que a lei determine as diferenças e estabeleça quais as distinções a serem consideradas. A investigação de critérios diferenciadores para pôr em prática a justiça distributiva está inseparavelmente ligada às questões sociais, notadamente pela desigualdade na distribuição de renda ser considerada uma das maiores causas da miséria mundial. 18. A inclinação de tributar igualmente aqueles que se encontram em posição igual se configura em uma fórmula vazia se não observados os princípios constitucionais e as imunidades, de forma que a tributação possa atender aos fins de manutenção do Estado, distribuição de renda e aos direitos dos contribuintes, que, numa visão abrangente, podem ser considerados escopos de um Estado constitucionalmente organizado e determinado. 19. Dentre os elementos de distinção aptos a preencher o conteúdo da igualdade e estabelecer a inserção de pessoa ou grupo na chamada categoria essencial o mais apropriado é o princípio da capacidade contributiva, de acordo com o qual cada contribuinte deve ser tributado segundo sua possibilidade de realizar a contribuição, arcando cada qual com ônus tributário mais elevado quanto maior for a sua capacidade. 20. A operacionalização da exigência tributária com os olhos voltados para a justiça precisa considerar a inconstitucionalidade da tributação exercida indistintamente sobre qualquer manifestação de capacidade econômica de um contribuinte. Apesar de ser contemplada como a melhor dimensão da capacidade contributiva, a renda há de ser definida positiva e negativamente a fim de declarar não tributável a porção dos rendimentos dos 138 contribuintes destinada à manutenção das condições dignas de sobrevivência, estabelecer a que é capaz de ser apropriada pelo Estado a fim de cumprir seus fins e livrar a parte que superaria as possibilidades de sacrifício. 21. A repartição da carga tributária, segundo o princípio da capacidade contributiva, é condição para que a tributação possa ser considerada justa, já que seu emprego como forma de diferenciar as pessoas ou grupos estabelecerá quais serão os destinatários da norma - aqueles que deverão suportar determinada carga tributária, com base nas suas possibilidades, dela dispensando aqueles que estão abaixo do nível mínimo de sobrevivência. 22. A utilização do princípio da capacidade contributiva, como forma de aplicação concreta do princípio igualdade, apresenta-se como caminho adequado para efetivação da justiça tributária, uma vez que para atingir seu fim, perpassa pela busca de uma melhor distribuição de renda, de proteção das condições de vida digna dos indivíduos e elevação dos valores encampados pela Constituição. 139